Equador: assédio, desapropriação e resistência dos Siekopai

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Desde o primeiro momento do contato com o mundo ocidental, os Siekopai tiveram que resistir e lutar por seus territórios e suas vidas. O povo amazônico se vê afetado pela expansão da fronteira petrolífera, pela monocultura da palma africana, pela invasão de colonos, pelos deslocamentos forçados e pela contaminação de suas fontes de alimentação. Atualmente, este povo, separado por meio da divisão das fronteiras criadas pelos Estados do Peru e Equador, luta contra o extrativismo diante de uma Justiça e um Estado que não garantem seus direitos ao território ancestral.

Desde o primeiro momento do contato com o mundo ocidental, os Siekopai tiveram que resistir e lutar por seus territórios e suas vidas. O povo amazônico se vê afetado pela expansão da fronteira petrolífera, pela monocultura da palma africana, pela invasão de colonos, pelos deslocamentos forçados e pela contaminação de suas fontes de alimentação. Atualmente, este povo, separado por meio da divisão das fronteiras criadas pelos Estados do Peru e Equador, luta contra o extrativismo diante de uma Justiça e um Estado que não garantem seus direitos ao território ancestral.

Um pouco além deles vivem os Siona que morreram. Os ñanserapái são
os que vivem no fim da terra, onde ela termina (as margens do mundo).
Nem morrem, vivem para sempre. Eles vivem como vivemos, mas não
morrem. Vivem perto de uma lagoa muito grande, em que há muitos
tucanos, ñansé, por isso são chamados de ñanserápai (o povo da lagoa
dos tucanos). Essas pessoas têm coroas feitas de penas de tucanos e
para jé e saipé. As penas da coroa são muito azuis. Eles vivem lá, eu os
O fascínio do mal – María Susana Cipolletti e Fernando Payaguaje

Um pouco além deles vivem os Siona que morreram. Os ñanserapái são os que vivem no fim da terra, onde ela termina (as margens do mundo). Nem morrem, vivem para sempre. Eles vivem como vivemos, mas não morrem. Vivem perto de uma lagoa muito grande, em que há muitos tucanos, ñansé, por isso são chamados de ñanserápai (o povo da lagoa dos tucanos). Essas pessoas têm coroas feitas de penas de tucanos e para jé e saipé. As penas da coroa são muito azuis. Eles vivem lá, eu os
O fascínio do mal – María Susana Cipolletti e Fernando Payaguaje

Místicos e míticos poderiam ser duas palavras chave para se referir aos Siekopai: um povo indígena ancestral da floresta amazônica que habita a fronteira entre Peru e Equador. Relatos como o do longevo sábio Fernando Payaguaje dão conta das representações da floresta, do universo, das relações com outros seres e do futuro da sociedade e da identidade. Dessa mesma forma, os depoimentos remetem à história geral e às transformações vividas por este povo milenar diante do assédio e da presença de agentes externos que cobiçaram seu território.

Como a maioria dos povos indígenas da Amazônia, os siekopai têm vivido os efeitos dramáticos e perversos da expansão da civilização cristã, capitalista e ocidental. Na atualidade, a desapropriação de seus territórios tem se intensificado, ao mesmo tempo que se tem emergido um movimento de resistência que busca defender o último reduto territorial Siekopai. Em um ambiente marcadamente adverso, a resistência busca reunificar uma nação separada por uma fronteira interestatal, junto com o reconhecimento de seus direitos à autodeterminação

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Maruja e Roque Payaguaje sentem que o território é a razão de suas existências. Fotos: Archivo Nación Siekopai

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Maruja e Roque Payaguaje sentem que o território é a razão de suas existências. Foto: Archivo Nación Siekopa

Elementos de lugar e de memória

Atualmente, os Siekopai se encontram distribuídos em quatro comunidades ao longo do médio curso do Rio Aguarico e em uma pequena área do Rio Lagartococha. Entretanto, seu território ancestral era muito maior. Durante a colonização, resistiram contra os espanhóis e os portugueses, conseguindo manter sua independência. Já no final do século XIX e início do XX sofreram as consequências da febre da borracha: a exploração, escravidão, morte e extermínio de outros povos amazônicos. Apesar do colapso da economia da borracha, os Siekopai continuaram ligados ao trabalho nas fazendas sob condições críticas.

Após a guerra entre Equador e Peru, em 1941, que definiu as fronteiras, algumas famílias Siekopai deixaram Lagartococha e se estabeleceram com seus parentes Sionas de Cuyabeno para viver em harmonia. Atraídos pela liberdade que os Siekopai equatorianos tinham, nos anos seguintes novos grupos abandonaram o lado peruano para retornar ao seu território ancestral e tentar a reunificação da nação Siekopai dividida pela fronteira. Este processo se acelerou com a assinatura do Acordo de Paz entre os países em 1988. Até os dias atuais a nação Siekopai busca sua integração cultural, política e territorial: um dos eixos que mobiliza sua agenda.

Um dos impactos sociais e ambientais mais significativos da ampliação da fronteira petrolífera e sua correspondente infraestrutura viária seria a entrada de colonos e indígenas de fora da área.

As rotas facilitariam a entrada de traficantes de terras.

Após o ciclo da borracha, veio a economia do petróleo. Em 1963, a empresa estadunidense Texaco ampliou a exploração para além do Rio Aguarico, invadindo o território Siekopai. Mais tarde, chegariam outras operadoras que intensificariam o processo de desapropriação e agressão até os dias atuais. Um dos impactos sociais e ambientais mais significativos da ampliação da fronteira petrolífera e sua correspondente infraestrutura viária seria a entrada de colonos e indígenas de fora da área, especialmente os Kichwas. Por sua vez, as rotas facilitariam a entrada de traficantes de terras.

A colonização impulsionada pelo Estado sob o controle dos militares obrigava os colonos a desmatar metade das florestas e substituí-las por pastagens ou monoculturas como requisito para ter acesso ao título de propriedade. Atualmente, a situação da alocação de terras é absolutamente crítica para os Siekopai. Os Siekopai contam com mais de 100.000 hectares, dos quais apenas 42.614 foram reconhecidas pelo Estado e somente 10% está na área protegida da Reserva de Produção Faunística Cuyabeno.

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Líderes da Nação Siekopai explicam ao Ministério do Ambiente a necessidade de uma alocação gratuita e a legalização de 90.000 hectares de seu território ancestral. Foto: Arquivo Nação Siekopai

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Líderes da Nação Siekopai explicam ao Ministério do Ambiente a necessidade de uma alocação gratuita e a legalização de 90.000 hectares de seu território ancestral. Foto: Arquivo Nação Siekopai

Dos evangélicos à petroleira Oxy

A dinâmica de desapropriação e controle territorial por parte de agentes externos sempre esteve acompanhada pela atuação dos missionários, sejam eles católicos ou evangélicos. Estes últimos atuaram associados ao Instituto Linguístico de Verão (ILV), que ingressou ao país em 1952, no ápice da cooperação estadunidense e de um processo de modernização capitalista ligado à presença de capital extrativista, aos processos de colonização e desenvolvimento rural. O ILV (originalmente, a Corporação Wycliffe Bible Translators) estabeleceu um projeto com aparência científica: o estudo das línguas aborígenes. Assim explica o antropólogo Jorge Trujillo: “Os missionários reivindicaram um controle real e efetivo dos povos indígenas, a ponto de submetê-los aos pareceres do aparato burocrático, eliminando qualquer maneira de expressão autônoma e organizada dos indígenas”.

Deste modo, os missionários do Instituto Linguístico de Verão contribuíram para um processo de destruição das culturas indígenas por meio do Programa de Serviços Práticos. Mais tarde, estas metodologias e abordagens foram retomadas nos anos 70 por companhias estadunidenses como Texaco e Occidental (Oxy). A advogada Judith Kimmerling descreve o segundo caso: “No início promete-se o respeito com a cultura local e a busca pelo ‘bem-estar para sempre’, mas quando a exploração de petróleo está em andamento, o interesse da empresa muda”.

Em nenhuma entrada na terra as empresas aplicaram o procedimento de consulta prévia, livre e informada, a pesar de que o Equador já havia assinado a Convenção 169 da OIT e, inclusive, havia incorporado este direito na Constituição de 1998.

Em nenhuma entrada na terra as empresas aplicaram consulta prévia, livre e informada, apesar de que o Equador já havia assinado a Convenção 169.

A partir de 1996, a empresa Occidental seria concessionária do chamado Bloco 15, no qual operou durante 10 anos até que terminou seu contrato e as atividades petrolíferas foram transferidas para a empresa estatal Petroecuador. Em nenhuma entrada nas terras as empresas aplicaram o procedimento de consulta prévia, livre e informada, apesar de que o Equador já havia assinado a Convenção 169 da OIT e, inclusive, havia incorporado este direito na Constituição de 1998. Este seria o preâmbulo de uma lista de violações dos direitos dos Siekopai, ao ponto de a Organização Indígena Secoya do Equador (OISE) denunciar, em 1998, infrações e abusos por parte da empresa.

Em resposta, a Occidental implementou uma estratégia de persuasão e divisão no interior da organização até assinar um “Código de Conduta” que suprimiu a possibilidade de vetar os Siekopai diante dos protestos comunitários e ambientais impulsados pela empresa. O acordo se limitava a fornecer determinadas infraestruturas às comunidades locais, como casas comunitárias, quadras de basquete, baterias sanitárias e bolsas de estudo para colocar as crianças nas escolas. Além disso, ministrar cursos de capacitação em agricultura, mecânica, costura e pesquisa etnográfica dos Siekopai.

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Oficina em San Pablo de Katëtsiaya. As mulheres têm sido protagonistas na defesa da memória, da identidade e da luta da Nação Siekopai. Foto: Pablo Ortiz-T.

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Oficina em San Pablo de Katëtsiaya. As mulheres têm sido protagonistas na defesa da memória, da identidade e da luta da Nação Siekopai. Foto: Pablo Ortiz-T.

Petrolíferas e produtores de palma africana: danos e interrupções

Com o tempo, os projetos comunitários e ambientais da empresa Occidental conseguiram neutralizar as ações e facilitar as operações petrolíferas. A transferência para a estatal Petroamazonas significou apenas o abandono da maioria dos projetos e sua substituição por ações da empresa pública “Equador Estratégico”. Assim como a Oxy, a companhia estatal priorizou um tipo de intervenção direcionada e clientelista, que deixou de lado as expectativas dos Siekopai em relação aos seus problemas territoriais e seus conflitos com os colonos.

Simultaneamente, em 2006, a petrolífera Andes Petroleum entrou como concessionária do Bloco 62: o capital social era constituído pelas empresas estatais China National Petroleum Corporation (55%) e China Petrochemical Corporation (45%). A operação se concretizou com a compra dos ativos da empresa canadense EnCana. Nas palavras do presidente da Nação Siekopai, Justino Piaguaje: “As operações das empresas chinesas no nosso território têm afetado algumas comunidades que são alimentadas pelo estuário AriPokoya, cujas águas agora estão turvas. A empresa escavou canais profundos sem consulta prévia com as comunidades e nem divulgou o Estudo de Impacto Ambiental”.

O uso indiscriminado de agroquímicos e o mau tratamento de resíduos contaminaram os rios e fontes de água localizados dentro do território Siekopai.

O uso indiscriminado de agroquímicos e o mau tratamento de resíduos contaminaram os rios e fontes de água localizados dentro do território Siekopai.

Outro caso de assédio e desapropriação do território Siekopai está associado ao capital agroindustrial de empresas de palma africana. Em meados da década de 80, durante o governo de León Febres Cordero, o Estado concedeu à empresa Palmeras do Equador 9.850 hectares dentro do território ancestral de San Pablo de Katëtsiaya. A partir de então, as monoculturas se expandiram para a parte alta da bacia do Rio Shushufindi.

O uso indiscriminado de agroquímicos e o mau tratamento de resíduos contaminaram os rios e fontes de água localizados dentro do território Siekopai. A contaminação afetou a disponibilidade de líquido vital para as famílias e aniquilou a ictiofauna, uma das principais fontes de alimentação. Atualmente, as quatro comunidades Siekopai, que possuem os últimos remanescentes da floresta tropical da zona, estão cercadas pela monocultura agroindustrial.

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O processo de desapropriação do território ancestral incluiu a criação da Reserva de Produção Faunística Cuyabeno. Oficina em San Pablo de Katëtsiaya. Foto: Pablo Ortiz-T.

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O processo de desapropriação do território ancestral incluiu a criação da Reserva de Produção Faunística Cuyabeno. Oficina em San Pablo de Katëtsiaya. Foto: Pablo Ortiz-T.

Conservação ou desapropriação? Áreas protegidas e desterritorialização

Outro fator de desterritorialização dos Siekopai está associado, paradoxalmente, à conservação. Em 1989, o Estado equatoriano impôs a criação da Reserva de Produção Faunística Cuyabeno (RPFC) sem envolver os povos ancestrais que habitam nesses territórios. Nem a definição de limites, nem o estabelecimento de objetivos, nem a realização de planos de gestão da área protegida incluiu os Siekopai. Assim, em nome da conservação, foi provocado o deslocamento e despejo dos povos indígenas da região.

A criação da RPFC também afetou os povos vizinhos A’i Kofán que se mudaram para o território Siekopai. Lá, os A’i Kofán fundaram uma comunidade chamada Zábalo e anos depois assinaram um acordo de uso e manejo do território. Entretanto, a promessa estatal de conservar os territórios nunca se cumpriu, pois a autoridade ambiental não conseguiu impedir os sucessivos processos de invasão da reserva por parte de traficantes de terras e colonos. Um dos casos mais conhecidos foi o de Nea Ña (Rio das Águas Negras).

Em nome da conservação, foi provocado o deslocamento e despejo dos povos indígenas da região.

Em nome da conservação, foi provocado o deslocamento e despejo dos povos indígenas da região.

“A falta de controle, de limites e de negociações que incluem os Siekopai fizeram com que o setor das Águas Negras fosse afetado por processos de colonização. Depois de realizar as reivindicações correspondentes, conseguimos o despejo temporário dos colonos da cooperativa Nueva Esperanza”, explica Justino Piaguaje.

Após uma fase de constantes conflitos, os Siekopai firmaram um acordo para estabelecer acampamentos, trilhas de caça e pesca, no qual nunca foi respeitado pelos colonos que decidiram invadir novamente as respectivas áreas. Celestino Piaguaje narra que o povo testemunhou a expansão da colonização: “Os funcionários não nos deixaram delimitar nosso território porque o setor seria declarado área protegida. Nos falaram para não nos preocuparmos porque o Estado garantiria que não haveria invasões”.

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Líderes Siekopai chegaram a acompanhar em Quito a demanda de adjudicação e legalização do território ancestral no setor de Pë`ëkë`ya e Sokoro. Foto: Arquivo Nação Siekopai.

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Líderes Siekopai chegaram a acompanhar em Quito a demanda de adjudicação e legalização do território ancestral no setor de Pë`ëkë`ya e Sokoro. Foto: Arquivo Nação Siekopai.

Resistência e luta pela reterritorialização

Enganos, promesas não cumpridas e negligências marcaram o comportamento das autoridades estatais equatorianas nas últimas três décadas. Diante desse cenário, a nação Siekopai apresentou ações judiciais como meio central para processar suas demandas e defesa de seus direitos coletivos. No entanto, os esforços têm sido em vão: as ordens judiciais não são cumpridas pelos responsáveis pelos despejos.

Em um dos casos mais representativos, os Siekopai se viram obrigados a expulsar os colonos que, em 2008, chegaram a ocupar 200 hectares da Comunidade de San Pablo de Katëtsiaya. De forma parecida, em 2015 apresentaram um recurso de amparo por uma demanda de reivindicação contra os invasores. Três anos depois, a Corte Provincial de Sucumbíos ratificou o caráter ancestral do referido território e ordenou o despejo imediato dos colonos. Entretanto, até 2022 não havia se efetivado o disposto pela sentença. “Para nós, este processo de invasão e a fata de ação oportuna das autoridades significaram a desapropriação do nosso território ancestral”, diz Piaguaje.

“Este território não pode ser esquecido por nós, porque a espiritualidade está lá. Eu estou aqui, mas quando morrer, regressarei a este lugar para alcançar a imortalidade que nossos avós sempre nos falaram”.

"Pë këya (Lagarto Cocha) é a razão de nossa existência. Para nós, tudo está ali, porque foi semeado e cuidado por nossos avós”.

Diante do assédio persistente e as poucas garantias fornecidas pelo Estado, desde 2017 foi considerada formalmente a atribuição gratuita e a legalização de 90.000 hectares de seu território ancestral no setor Pë`ëkë`ya (Lagarto Cocha) e Sokoro (Zancudo Cocha), dentro da Reserva de Produção Faunística Cuyabeno. Esta reivindicação provocou novos conflitos com as comunidades kichwa de Zancudo e A´I de Zábalo. “Por conta da guerra, eu fiquei aqui e minha irmã do outro lado. Quero voltar a viver com ela, quero ir pescar em Pë`ëkë`ya, queremos seguir sendo Siekopai”, relata Roque Payaguaje.

Do mesmo modo, aos 79 anos, Maruja Payaguaje explica que Pë këya é a razão de sua existência porque foi semeado e cuidado por seus avós: “Este território não pode ser esquecido por nós, porque a espiritualidade está lá, por isso digo que estou aqui, mas quando for minha vez de morrer, regressarei a este lugar para alcançar a imortalidade que nossos avós sempre nos falaram”.