A perseguição colonial contra os sobreviventes do povo Avá-Canoeiro, mais conhecidos como Ãwa, continua vigente. Uma nova decisão judicial reduziu seu território a áreas inundáveis, em sua maior parte, e sem acesso ao Rio Javaés. O conflito adquire maior complexidade diante da presença de um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) criado na década de 1990.
A perseguição colonial contra os sobreviventes do povo Avá-Canoeiro, mais conhecidos como Ãwa, continua vigente. Uma nova decisão judicial reduziu seu território a áreas inundáveis, em sua maior parte, e sem acesso ao Rio Javaés. O conflito adquire maior complexidade diante da presença de um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) criado na década de 1990.
Há exatos cinquenta anos, em 1973, durante a ditadura militar, a então chamada Fundação Nacional do Índio (FUNAI) forçou o contato com onze sobreviventes dos Avá-Canoeiro do Araguaia, o que levou à remoção do grupo, beneficiando poderosos grupos econômicos que se apropriaram de seu território. Três anos depois, das onze pessoas atacadas pela Frente de Atração, apenas cinco estavam vivas, mas agora o grupo soma mais de 30 pessoas depois de casamentos interétnicos. Desde então, esse povo autodenominado Ãwa, falante de uma língua tupi, aguarda em terra alheia o retorno a um território próprio onde possa se reunificar como comunidade de parentes. Aquele despejo violento e estarrecedor foi o ápice de séculos de genocídio e perseguição incessante a um povo que jamais aceitou se render ao colonizador e que até hoje sofre suas consequências nefastas.
Apesar da injustiça estatal, o povo Ãwa obteve algumas vitórias sobre o Estado brasileiro que se constituíram em medidas de reparação: o reconhecimento oficial da Terra Indígena Taego Ãwa em 2016 por parte do Ministério da Justiça (que ainda está invadida); e três ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal em seu favor, solicitando uma indenização por danos morais e materiais, a demarcação da terra indígena e a proteção dos parentes ainda “isolados”. Em março deste ano, o Tribunal Federal Regional da 1ª Região decidiu favoravelmente, e por unanimidade, ao pedido de indenização, com redução parcial dos valores. No entanto, uma inquietante decisão judicial de novembro de 2022 reavivou a velha e perene opressão colonizadora.
Kaukamã, último sobrevivente do contato na Terra Indígena Taego Ãwa. Foto: Patrícia de Mendonça Rodrigues
Kaukamã, último sobrevivente do contato na Terra Indígena Taego Ãwa. Foto: Patrícia de Mendonça Rodrigues
Uma decisão judicial contra o povo Ãwa
No processo judicial pela demarcação da Terra Indígena Taego Ãwa, um Juiz Federal de 1ª instância decidiu pela redução de cerca de 30% do território indígena, excluindo, em benefício de terceiros, o acesso ao principal rio da região (Rio Javaés), fundamental para pesca, transporte e atividades diárias. Restaria aos Avá-Canoeiro uma área quase toda inundável, cujo único lugar seco não tem acesso a água potável. Embora os Avá-Canoeiro tenham se adaptado admiravelmente a este local inóspito, a decisão judicial confinou-os a um território praticamente inabitável.
A decisão causou profunda perplexidade, pois o juiz, em sua longa argumentação jurídica, reconhece plenamente o direito indígena e acolhe sem contestar os argumentos do relatório antropológico oficial da FUNAI de 2012, que levou à declaração da posse indígena pelo Ministério da Justiça, e o Relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014, que deu destaque ao caso Avá-Canoeiro. A perícia judicial realizada em 2021 confirmou os argumentos do relatório antropológico.
O Juiz Federal de Gurupi decidiu reduzir cerca de 30% de seu território, beneficiando a terceiros com o acesso ao Rio Javaés, o principal rio da região para pesca, transporte e atividades cotidianas.
O Juiz Federal de Gurupi decidiu reduzir cerca de 30% de seu território, beneficiando a terceiros com o acesso ao Rio Javaés.
Esses documentos oficiais narram detalhadamente uma sequência de erros e atos de violência do Estado brasileiro entre 1973 e 1976. Em primeiro lugar, o ataque intempestivo e a captura dos indígenas, sobreviventes de décadas de genocídio, na Fazenda Canuanã, com um tiroteio que matou a menina Typyire, fato omitido nos boletins oficiais da FUNAI. Segundo, a utilização de alguns homens xavante como “caçadores de índios” (um antigo papel colonial) para localizar o refúgio dos Avá-Canoeiro. A seguir, a exposição pública e extremamente constrangedora, por dias a fio, das pessoas capturadas e presas num quintal cercado da luxuosa fazenda a dezenas de curiosos.
Além disso, houve negligência em relação à baixa imunidade dos recém-contatados. O vírus de pneumonia levou à morte de, pelo menos, Tutxi, cujo corpo foi levado a Goiânia e nunca devolvido aos parentes. Por outro lado, a Guarda Rural Indígena da Ilha do Bananal foi empregada em relações de dominação entre povos diferentes (levando os Javaé a desempenhar o papel de “amansadores” dos Avá-Canoeiro), de modo que repetidos abusos físicos e emocionais compõem a memória traumática do grupo. Também foi feita a transferência dos sobreviventes para uma aldeia dos Javaé, onde os Avá-Canoeiro foram marginalizados e passaram a viver como que em exílio.
O juiz concluiu seu arrazoado dizendo que a situação exige “esforço argumentativo extra” para “alteração de área”, a fim de “deixá-la aquém daquela previamente delimitada pela FUNAI”. A justificativa para esse corte é beneficiar a maior parte dos lotes do Projeto de Assentamento Caracol, que deverão ser excluídos da Terra Indígena Taego Ãwa. O magistrado argumentou que buscava “reduzir o impacto social provocado pelo desalojamento de mais de 100 famílias, somado ao impacto econômico na região de Formoso -TO”.
Terras Indígenas do Médio Araguaia (2013). Mapa: Patrícia de M. Rodrigues e Dan Pasca
Terras Indígenas do Médio Araguaia (2013). Mapa: Patrícia de M. Rodrigues e Dan Pasca
A consequência de uma política de terras equivocada
Por grave omissão e negligência da FUNAI, o assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi instituído na década de 1990, exatamente na área onde os onze sobreviventes foram atacados pela FUNAI. As famílias do assentamento foram transferidas por ordem judicial do então Parque Indígena do Araguaia (dentro da Ilha do Bananal), vizinho da área de ocupação tradicional dos Avá-Canoeiro.
Os assentados foram transferidos de uma terra indígena regularizada para outra ainda não regularizada. Com recursos da União, o INCRA adquiriu áreas que haviam sido apropriadas pela Fazenda Canuanã e depois revendidas ao próprio Estado brasileiro. Essa transferência irregular foi a base do conflito atual entre posseiros e indígenas, igualmente vítimas de omissões e negligências históricas por parte do Estado e de políticas fundiárias equivocadas.
Apesar de toda a evidência histórica recolhida, a ocupação tradicional indígena foi preterida em prol dessa ocupação recente e equivocada.
Apesar de toda a evidência histórica recolhida, a ocupação tradicional indígena foi preterida em prol dessa ocupação recente e equivocada.
Na sentença em questão, o juiz informa que apenas 30 famílias (das 103 que vivem atualmente na Terra Indígena Taego Ãwa) são originárias da Ilha do Bananal e estão na terra indígena desde o início do assentamento. Os lotes das outras famílias são terras da União e foram repassados ilegalmente a outras pessoas ao longo dos anos. Some-se a essa situação o fato de que se trata de área de várzea (arenosa e inundável na maior parte do ano), com baixa aptidão para o tipo de atividade agrícola realizada. Além disso, grande parte dos moradores do assentamento aluga pastagens fora do assentamento na época das cheias, porque não há lugares secos para o gado.
Mesmo assim, a ocupação tradicional indígena foi preterida em prol dessa ocupação recente e equivocada. Segundo a argumentação jurídica recente do Ministério Público Federal na apelação contra a decisão judicial, não cabe a um Juiz de 1ª. instância definir limites de uma terra indígena (o que é uma atribuição técnica do órgão indigenista). Muito menos em uma ação judicial que apenas solicitava a continuidade do processo de demarcação ao Estado brasileiro.
O líder histórico Tutawa, na aldeia Boto Velho, e o comunitário Agàek na Terra Indígena Taego Ãwa. Foto: Patrícia de Mendonça Rodrigues
O líder histórico Tutawa, na aldeia Boto Velho, e o comunitário Agàek na Terra Indígena Taego Ãwa. Foto: Patrícia de Mendonça Rodrigues
A continuação da opressão
Em março de 2022, ainda no governo do Presidente Jair Bolsonaro, foi promovida uma audiência de conciliação entre as partes interessadas. O INCRA e os ocupantes particulares (duas fazendas) apresentaram propostas lesivas aos direitos indígenas. O objetivo era negociar os limites da Terra Indígena Taego Ãwa, sem a oposição da Procuradoria Federal da FUNAI, também representada na audiência.
Da parte dos fazendeiros, foi proposta apenas uma ajuda financeira para a instalação de futura aldeia no que restasse da terra indígena, desde que as fazendas fossem dela excluídas. Da parte do INCRA, foi apresentada a proposta de exclusão de todos os lotes do assentamento da terra indígena, mantendo-se apenas áreas de reserva legal, que são totalmente inundáveis e sem acesso ao Rio Javaés. Juntando-se as duas propostas, restariam aos Avá-Canoeiro apenas 7.101 ha do total de cerca de 29.000 ha declarados pelo Ministério da Justiça. Ou seja, seriam subtraídos 75% da terra indígena, restando 25% do original, onde não é possível viver nem enterrar os mortos.
A redução das terras indígenas representa a continuidade de um longo processo de opressão e exílio vivido pelos Avá-Canoeiro desde o início da colonização.
A redução das terras indígenas representa a continuidade de um longo processo de opressão e exílio vivido pelos avá-canoeiros.
Os Avá-Canoeiro não aceitaram qualquer tipo de negociação. A proposta apresentada era-lhes tão prejudicial e desvantajosa que recorda os tempos em que eram conhecidos como o povo do Brasil Central que mais resistiu ao colonizador e, por isso, eram caçados como animais selvagens. A proposta do INCRA/fazendeiros tratou os Ãwa como se o acossamento colonial e genocida ainda estivesse em marcha: um espaço físico onde humanos não podem habitar reserva aos indígenas o lugar mais baixo de uma hierarquia simbólica perversa. O outro nome para isso é racismo. Ao povo indígena celebrizado na literatura histórica por preferir a morte à sujeição, coube a desumanização completa.
A decisão judicial atenuou parcialmente a sanha colonizadora, excluindo “apenas” cerca de 30% da terra indígena, preservando alguns lugares secos e significativos. Por outro lado, subtraiu o acesso ao principal rio a um povo que ficou conhecido na literatura histórica como “Canoeiro”. A diminuição da terra indígena nas condições propostas representa a continuidade de um longo processo de opressão e desterro vivido pelos Avá-Canoeiro desde os primórdios da colonização.
Este artigo sintetiza a nota técnica incluída na reportagem “Por decisão do juiz, Avá-Canoeiro perde 30% do território tradicional”, escrita em parceria com a bióloga Luciana Ferraz.