A repatriação de restos ancestrais ajuda a corrigir as injustiças do passado ao conceder às comunidades indígenas a oportunidade de reconectar-se com seus ancestrais, fortalecer suas identidades culturais e sanar traumas históricos. Annelize Kotze, ativista de direitos indígenas e curadora de História Social no Museu Iziko da África do Sul, ressalta a importância de criar consciência e fomentar a discussão acerca da coleção de restos humanos nos museus e a repatriação para às suas comunidades de origem.
Debates Indígenas: Como te tornastes defensora e ativista do movimento de repatriação de restos humanos?
Annelize Kotze: Embora soubesse que o Museu Iziko possuísse moldes de corpos em exibição, os quais foram retirados após consultas à comunidade, não fazia idea de que tínhamos restos humanos inacessíveis ao público entre nossas coleções. Esse ano, Iziko organizou uma conferência sobre restos humanos para a Associação de Museus da Commonwealth. Um dos assistentes pediu acesso a nossa coleção, o qual foi possível seguindo protocolos específicos. Ao acompanhá-la foi a primeira vez que estive na sala com os restos e foi uma experiência emotiva para todos nós. Despois dessa experiência, pediram-me ajuda para catalogar alguns moldes corporais sensíveis e até organizei uma exposição sobre repatriação com foco em Sarah Baartman e, os restos de mulheres, jovens e crianças que ainda se encontram nos museus.
DI: Por que acredita que este caminho é essencial?
AK: É importante para nó trabalhar a repatriação e criar políticas práticas para dar aos restos a dignidade e o respeito que merecem, e para que suas comunidades os enterrem adequadamente. Como curadora dos Museus Iziko, sinto que posso fazer uma diferença prática, e levo a minha responsabilidade a sério.
DI: Qual é a importância deste trabalho para você?
AK: Sabe como aparece a caixa com os restos humanos em um museu? A etiqueta contêm informações sobre a parte do esqueleto, o sexo, a idade provável e de onde veio. Ver a origem dos restos na caixa e saber que é de onde é minha família em Northern Cape, foi um grande choque para mim. Me reuni com pessoas das áreas de onde se retiraram os restos e uma mulher simplemente disse que queria que seu povo fosse enterrado. Em Glasgow, um dos museus queria repatriar restos humanos retirados da África no século XIX. No último dia lá, sozinha, coloquei música e fiz uma cerimônia para me desculpar pela dor causada por ações passadas que os levaram a estar tão longe de suas casas e ainda na clandestinidade. Muitas comunidades sentem trauma e devem curar-se. Também estão sendo repatriados objetos enterrados junto com os restos, bens funerários, em sinal de respeito às culturas as quais pertencem. A experiência é emocionante e pesada, mas necessária para honrar as almas daqueles que foram subtraídos.
Annelize Kotze explica que la repatriação dá aos restos a dignidade e o respeito que merecem. Foto: Daria Polygalova e Indiana Lokotar
Annelize Kotze explica que la repatriação dá aos restos a dignidade e o respeito que merecem. Foto: Daria Polygalova e Indiana Lokotar
DI: Quais são os principais passos na repatriação de restos humanos?
AK: O processo de repatriação não é fácil devido aos aspectos administrativos e políticos. Requer que requerem acordos políticos entre os museus e os governos. Cada caso é único e implica diferentes comunidades, políticas e países. É essencial manter a comunidade informada, mas sem criar expectativas pouco realistas, dado que o processo pode levar anos e exige coragem, paixão, perseverança e disposição para aprender. É crucial ser honesto e não mentir para a comunidade, já que são a parte mais importante do processo. Os ativistas, grupos e organizações internacionais também podem dar assistência e ajudar na repatriação. Em última instância, são os restos e os espíritos que devem regressar, e é responsabilidade dos que estão envolvidos no processo fazer que isto ocorra da maneira mais tranquila possível.
DI: Qual o papel das emoções no seu trabalho?
AK: Expressar emoções ao trabalhar com os restos humanos em um museu pode ser um tema delicado. É provável que alguns colegas não estejam tão envolvidos emocionalmente como outros, o que pode gerar mal-entendidos. Para mim, este trabalho é muito emocionante e trato de destacar essa perspectiva nas discussões. Recordo aos meus colegas que devemos ser conscientes do lado humano dos restos e das comunidades a que eles pertencem. Importante lembrar que as comunidades ainda sentem a dor causada pelo passado e, como profissionais de museus, devemos assumir a responsabilidade do dano causado e reconhecer as emoções. Contudo, também é importante cuidarmos de nós mesmos e buscar ajuda caso seja necessário, já que podemos nos tornar apoio emocional para as comunidades com as quais trabalhamos. Está bem expressar emoções, mas cada um tem seu próprio modo de lidar com isso, e devemos respeitar isso nos outros para que tudo occorra da forma mais adequada A cura começa em nós e se estende a nossos colegas e à comunidade em geral.
Por que algumas pessoas e instituições argumentam a favor de manter os restos humanos nos museus em lugar de devolvê-los a suas comunidades?
AK: A oposição à repatriação tem suas raízes nos benefícios que os museus e as universidades possuem ao manter os restos humanos em suas coleções. As instituições podem obter credenciamento e financiamento por meio de investigações sobre estos restos “recolhidos de forma ética”, e enterrá-los limitaria oportunidades para projetos futuros. No passado, também havia benefícios econômicos oriundos do comércio de ossos e artefatos, mas agora se trata mais da investigação que se pode levar a frente. No entanto, é importante considerar o que significa estudar restos humanos e utilizar a tecnologia moderna para que os estudos sejam respeitosos.
“Como profissionais de museus, devemos assumir a responsabilidade do dano causado”, explica a curadora. Foto: Annelize Kotze
“Como profissionais de museus, devemos assumir a responsabilidade do dano causado”, explica a curadora. Foto: Annelize Kotze
DI: Como é a política de Iziko?
AK: Iziko tem uma política muito rigorosa sobre os restos adquiridos de forma não ética, quer dizer, aqueles que foram coletados no passado por uma ciência com perspectiva racista. Nesses casos, não é permitida a investigação, e o aceso só é permitido para as comunidades com fins de repatriação. Os restos humanos adquiridos de manera antiética são armazenados em separado ou em espaço claramente demarcado, enquanto esperam por sua repatriação. Apesar dos desafios, é importante priorizar a devolução dos restos a seu lugar legítimo e contar suss histórias.
DI: Quall é o papel dos governos na repatriação?
AK: A repatriação de restos humanos requer a permissão dos governos e de políticas públicas. Além do mais, alguns órgãos públicos estão dispostos a considerar a repatriação, enquanto outros não. Cada caso é único e requer uma investigação exaustiva e argumentos convincentes. Os investigadores e curadores que trabalham com os restos também devem estar cientes destas políticas. De outro modo, é importante ser sensível e diplomático ao trabalhar com as entidades. O aspecto espiritual da repatriação pode ser utilizado para encorajar museus a considerar a repatriação, mas os argumentos acadêmicos podem ser mais efetivos. O processo nem sempre é tranquilo e alguns museus podem negar-se a repatriar objetos, todavia, há avanços.
DI: Encontrou algum caso em que um museu se tenha negado a repatriar restos?
AK: Alguns museus estão abertos à idea da repatriação e outros não. É importante avaliar a situação antes de abordar-se um museu com uma solicitação de repatriação. Se trata com acadêmicos, deves ser capaz de relacionar-se com eles nesse nível. Não é suficiente chegar com uma caixa de lenços e lágrimas e esperar que tudo corra bem. Deves falar seu idioma e explicar porque a repatriação é importante. Lembro da repatriação de uma camisa da Dança do Fantasma, que foi roubada da tribo indígena americana lakota e estava em exibição no museu Kelvingrove em Glasgow. Depois de uma negociação de sete anos, os lakota decidiram que a história por detras da camisa e outros objetos parecidos permanecessem no museu. Uma vez que a camisa original foi devolvida a seus legítimos donos, os lakota deram uma réplica da camisa ao museu.
A ativista destaca que a repatriação de restos é importante para que as comunidades possam realizar seus rituais fúnebres. Foto: Daria Polygalova e Indiana Lokotar
A ativista destaca que a repatriação de restos é importante para que as comunidades possam realizar seus rituais fúnebres. Foto: Daria Polygalova e Indiana Lokotar
DI: O que significa repatriação para as comunidades indígenas?
AK: É importante comprender o significado espiritual para as comunidades envolvidas. Não se trata somente de um tema de direitos humanos ou de minorías étnicas, senão que de significado espiritual. Para estas comunidades, a repatriação dos restos ou dos artefatos culturais é uma forma de restaurar o equilíbrio e render homenagens a seus antepassados. É crucial que os museus estejam abertos a ter discussões sobre a repatriação e não se aferrem a objetos que foram obtidos de forma não ética.
DI: Poderia falar sobre o significado espiritual da repatriação?
AK: Quando uma perssoa morre, cada comunidade tem suas próprias práticas funerárias. Mas se um túmulo é profanado, a crença de que a alma está no camino de converter-se em um antepassado que cuida da comunidade é interrompida. Se uma pessoa não completa a viagem, ocorre uma desconexão no sistema que a comunidade não pode corrigir. É importante que os restos estejam na terra para que possam continuar sua jornada para converter-se em antepassado. O processo do enterro varia em cada comunidade e precisa ser respeitado. Quando se repatriou Sarah Baartman, sua comunidade decidiu como enterrá-la. Para eles era fundamental ter o ritual e a queima de ervas, que elevam o espírito e se comunicam com os antepassados. Se estes rituais não ocorrem, gera-se um vazio emocional e espiritual na comunidade.