Desde meados do século XX, as áreas protegidas se expandiram por todo o planeta a raiz dos crescentes problemas ambientais. Sua extensão coincidiu com 50 por cento dos territórios ancestrais. No entanto, foi imposto o “modelo Yellowstone” que não leva em conta que nessas terras habitam povos indígenas. Embora nos últimos anos os conhecimentos indígenas tenham começado a ser considerados, sua participação na gestão das áreas protegidas estão subordinadas à burocracia estatal. Neste contexto, é fundamental que a sabedoria e práticas ancestrais ocupem um papel importante nas políticas de conservação.
Desde meados do século XX, as áreas protegidas se expandiram por todo o planeta a raiz dos crescentes problemas ambientais. Sua extensão coincidiu com 50 por cento dos territórios ancestrais. No entanto, foi imposto o “modelo Yellowstone” que não leva em conta que nessas terras habitam povos indígenas. Embora nos últimos anos os conhecimentos indígenas tenham começado a ser considerados, sua participação na gestão das áreas protegidas estão subordinadas à burocracia estatal. Neste contexto, é fundamental que a sabedoria e práticas ancestrais ocupem um papel importante nas políticas de conservação.
No documento final da Conferência das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica de 2022 (COP 15), chamado Marco de Biodiversidade Global de Kunming-Montreal, está incluída uma lista de 23 metas orientadas a adotar medidas urgentes, que devem começar imediatamente e completar até 2030.
É particularmente relevante a meta número 3 que estabelece: “Garantir e tornar possível que , para 2030, ao menos 30% das áreas terrestres e de águas continentais e áreas marinhas e costeiras, especialmente as áreas de particular importância para a biodiversidade e para as funções e os serviços dos ecossistemas, sejam efetivamente conservadas e gerenciadas por meio de sistemas de áreas protegidas ecologicamente representativas, bem conectadas e equitativamente governadas e outras medidas eficazes de conservação baseadas em áreas, reconhecendo, quando apropriado ,os territórios indígenas e tradicionais (…)”.
Não foram apenas organizações ambientais internacionais que estiveram trabalhando durante anos para alcançar este objetivo, chamado meta 30 X 30, Economistas e empresários também analisaram os efeitos positivos da expansão das áreas protegidas. Particularmente na indústria do turismo e, especialmente, depois do colapso da atividade provocado pelo isolamento da Covid-19. Este recente desenvolvimento mostra que o conceito de áreas protegidas segue gerando uma ampla resposta positiva.
Durante a COP15, realizada no Canadá, foi adotado o Quadro de Biodiversidade global de Kunming-Montreal. Foto: CBD
Durante a COP15, realizada no Canadá, foi adotado o Quadro de Biodiversidade global de Kunming-Montreal. Foto: CBD
As áreas protegidas
Supostamente, as áreas protegidas deveriam ser estabelecidas para a conservar a biodiversidade e estabilizar os ecossistemas em perigo. Elas são vistas como um mecanismo que protege as espécies em perigo de extinção. Inclusive, são mais antigas que o novo quadro de proteção à biodiversidade. Em 1° de março de 1872, o então presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant, assinou uma lei intitulada: “Uma lei para separar uma certa extensão de terra que se encontra perto das cabeceiras do rio Yellowstone como parque público”. Desta maneira, nasceu o primeiro parque nacional.
Yellowstone está situado em uma paisagem impressionante. Naquele momento então, ainda se encontrava distante do avanço da civilização de colonos anglo-saxões. No entanto, o território não estava vazio de gente: os povos Crow, Shoshone, Nez Percé e outros grupos indígenas foram expulsos imediatamente da região pelo exército dos Estados Unidos. Havia, pelo menos, 27 povos indígenas que tinham uma conexão histórica com esta área de proteção ambiental criada por Grant.
Segundo o profeta cristão John Muir, não há lugar para os “selvagens” em uma região vista como uma natureza original, divina e sublime. Assim, as maravilhas naturais que haviam sido preservadas por Deus para impactar aos colonos cristãos.
Segundo o profeta cristão John Muir, não há lugar para os “selvagens” em uma região vista como uma natureza original, divina e sublime.
O primeiro parque nacional do mundo foi resultado de atividades e esforços de John Muir, um dos primeiros defensores da preservação da natureza nos Estados Unidos. Muir foi um profeta cristão que acreditava que havia uma presença divina na natureza: supostamente, uma natureza originária e pura.
Deste modo, Muir influenciou profundamente na maneira em que os estadunidenses continuam a compreender sua relação com o mundo natural. Segundo ele, não há lugar para os “selvagens” em uma região vista como uma natureza original, divina e sublime. Assim, as maravilhas naturais que haviam sido preservadas por Deus para impactar os colonos cristãos que haviam chegado do “Velho Mundo”.
Os shoshone, um povo caçador e coletor, foram expulsos imediatamente de Yellowstone pelo exército estadunidense. Foto: William Henry Jackson
Os shoshone, um povo caçador e coletor, foram expulsos imediatamente de Yellowstone pelo exército estadunidense. Foto: William Henry Jackson
O modelo de Yellowstone
Desde meados do século XX, as áreas protegidas se expandiram por todo o planeta a raiz dos crescentes problemas ambientais. Sua extensão coincidiu com 50 por cento dos territórios ancestrais. No entanto, foi imposto o modelo de Yellowstone que leva em conta que nessas terras habitam povos indígenas. Embora nos últimos anos os conhecimentos indígenas tenham começado a ser considerados, sua participação na gestão das áreas protegidas estão subordinadas à burocracia estatal. Neste contexto, é fundamental que a sabedoria e práticas ancestrais ocupem um papel importante nas políticas de conservação.
Desde meados do século XX, os problemas ambientais que tornaram-se cada vez mais visíveis e o estabelecimento de novas áreas protegidas experimentou um auge global. Entre 1951 e 2000, a extensão das áreas terrestres protegidas aumentou de, aproximadamente, um milhão de quilômetros quadrados a mais de 13 milhões. Em quantidade, significa um crescimento de 20.000 a 100.000 áreas protegidas. No entanto, o que se difundiu foi o modelo de Yellowstone, que se tornou no expoente de área protegida fundamentado na ideia de proteger a “natureza pura”.
O modelo de Yellowstone possui as seguintes características: as áreas protegidas são estabelecidas unilateralmente pelo Estado; seu desenho e administração estão nas mãos de agências governamentais que, frequentemente, trabalham com ambientalistas; as terras e a biodiversidade são consideradas propriedade do Estado; a base do conhecimento para sua administração está baseada nas ciências biológicas; seu propósito é a conservação da natureza sem humanos, não são considerados os contextos socioculturais; e , finalmente, sua criação é realizada de acordo com os denominados critérios científicos objetivos, Isto é, o elevado nível de diversidade biológica endêmica e elevado grau de ameaças para esta diversidade.
A maioria das áreas protegidas se sobrepõe sobre territórios com populações humanas que tradicionalmente viveram ali. São estimadas que 50% destas áreas coincidem com o habitat tradicional de povos indígenas.
A maioria das áreas protegidas se sobrepõe sobre territórios com populações humanas que tradicionalmente viveram ali.
A maioria destas áreas protegidas estão localizadas em regiões de países em desenvolvimento, que não são selvagens nem desabitadas. Com efeito, se sobrepõem sobre territórios com populações humanas que tradicionalmente viveram ali. São estimadas que 50% destas áreas coincidem com o habitat tradicional de povos indígenas. A maioria destas populações não foram consideradas como relevantes para os propósitos das áreas protegidas pois estas se criaram sobre a base dos critérios científicos ocidentais da “natureza” e de “conservação”. E é de poder exclusivo (e excludente) do Estado definir e gerenciar seu funcionamento. O estabelecimento de áreas protegidas implica um processo de extensão do controle estatal sobre os espaços reivindicados pelos Estados.
Ao mesmo tempo, as áreas protegidas tornam-se em um veículo de assimilação coercitiva e uma espécie de “missão civilizadora”. Esta ideia colonial tem um forte contexto histórico e filosófico: John Locke, o pai do liberalismo moderno, defendeu os direitos da propriedade individual como fundados no direito natural. Seguindo seus argumentos, os frutos do trabalho são próprios, pois se trabalhou para isso, por exemplo, quando se transforma a natureza em regiões de (agri)cultura. Assim, ao agricultor cabe o direito de propriedade natural sobre a terra pois a propriedade exclusiva seria necessária a para a produção. De acordo com esta perspectiva, as pessoas que não cultivam nem delimitam suas terras não teriam propriedade legítima. Deste modo, os indígenas americanos foram vistos como tribos errantes, levando frutas e animais da natureza, sem nenhuma contribuição significativa.
Os pastores Maasai da Tanzania lutam para evitar que o governo crie uma área de conservação para a caça. Foto: Landportal
Os pastores Maasai da Tanzania lutam para evitar que o governo crie uma área de conservação para a caça. Foto: Landportal
Os territórios indígenas: os mais biodiversos do planeta
Esta abordagem colonialista do liberalismo foi se tornando uma teoria geral sobre a legitimidade da propriedade, que nega aos povos indígenas o direito sobre suas terras. Esta filosofia social do iluminismo incluiu uma determinada visão sobre a natureza, que serviu como base teórica para justificar o estabelecimento da nova civilização de colonos europeus: a natureza foi vista como uma categoria de vacuum domicilium (de terreno baldio) e somente o trabalho humano poderia transformá-la em um objeto de propriedade.
As instituições sociais dos povos originários da América não foram considerados como uma ordem política: sua relação com a terra não foi reconhecida como uma condição adequada para reivindicar sua propriedade, e a maneira como lidaram com os conflitos internos também não foi vista como uma ordem jurídica legítima. Em resumo, os filósofos iluministas consideraram que os povos indígenas viviam em um estado de natureza e não em uma sociedade civil, ideia que mais tarde passou a fazer parte da doutrina jurídica do séculos XIX. Embora os indígenas não foram definidos como não-humanos, os conquistadores consideraram que deveriam ser submetidos e “governados” por instituições europeias. Nesse sentido, o conceito da natureza baldia criou o pré-requisito para a expansão das instituições coloniais.
As pesquisas indicam que aproximadamente 80% da diversidade biológica do mundo existe em regiões que ainda estão sob o controle de povos indígenas.
As pesquisas indicam que aproximadamente 80% da diversidade biológica do mundo existe em regiões que ainda estão sob o controle de povos indígenas.
No entanto, a coincidência espacial de ecorregiões biodiversas e de territórios indígenas não é acidental. A diversidade e a riqueza ecológica destas áreas são o resultado do modo de vida e das instituições dos povos indígenas. As conexões espirituais que tem com seu habitat, o uso comunitário dos recursos e as formas consuetudinárias de gestão das florestas, as áreas montanhosas, os recursos hídricos e a vida silvestre preservaram a diversidade genética e ecológica, e estimularam o desenvolvimento em muitos locais.
Os estudos de ciências naturais mais recentes confirmam estes dados. As terras, frequentemente caracterizadas como “naturais”, “intactas” e “nativas”, geralmente exibem longos históricos de uso por sociedades tradicionais. Hoje em dia, os territórios sob a gestão indígena são reconhecidos como os de maior biodiversidade do planeta, inclusive superior a áreas como uma ausência total de populações humanas. As pesquisas indicam que aproximadamente 80% da diversidade biológica do mundo existe em regiões que ainda estão sob o controle de povos indígenas. Por sua vez, 92% das terras das comunidades indígenas locais estudadas são “sumidouros líquidos de carbono”, o que significa que absorvem mais dióxido de carbono do que emitem.
Hindou Oumarou Ibrahim, referência mbororo. Durante o V Congresso Mundial de Parques em Durban, os indígenas reclamaram que fosse dada a prioridade à conservação baseada na posse comunitária. Foto: @hindououmar
Hindou Oumarou Ibrahim, referência mbororo. Durante o V Congresso Mundial de Parques em Durban, os indígenas reclamaram que fosse dada a prioridade à conservação baseada na posse comunitária. Foto: @hindououmar
Compatibilizar as áreas protegidas e os territórios indígenas
A atual crise de extinção, a ameaça global à diversidade biológica, não é resultado de uma invasão a regiões naturais desabitadas. Trata-se antes da destruição de paisagens culturais, habitadas e protegidas por sociedades indígenas. Paradoxalmente, a expansão das áreas protegidas contribuiu para esta destruição a partir da realocação ou aniquilação dos guardiões da terra. Sem contar as perdas associadas a seus conhecimentos e práticas ancestrais, assim como de seus sistemas de organização social.
Esses fatos recentemente influenciaram a política ambiental. Em 2003, pela primeira vez, representantes dos povos indígenas participaram no V Congresso Mundial de Parques em Durban (África do Sul): um fórum internacional central para a agenda das áreas protegidas e patrocinado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Os indígenas apresentaram uma série de ações: exigiam p reconhecimento do direito consuetudinário sobre seus territórios e recursos; denunciaram o deslocamento forçado como genocídio cultural e físico; e reivindicam a restituição de suas terras; é importante mencionar que não questionaram a política ambiental mas sim enfatizaram a necessidade de compatibilizar a proteção da natureza com a diversidade cultural.
A conservação e proteção ambiental efetiva precisam de um caminho alternativo. As vozes indígenas não devem ser apenas ouvidas, mas seus conhecimentos e práticas tradicionais deveriam ser a base do debate.
As vozes indígenas não devem ser apenas ouvidas, mas seus conhecimentos e práticas tradicionais deveriam ser a base do debate.
Durante as últimas décadas, os povos indígenas vem sendo cada vez mais escutados na gestão das áreas protegidas. As organizações ambientais promoveram a ideia da gestão conjunta: uma combinação entre os conhecimentos tradicionais e a “a gestão moderna de parques”, na qual os indígenas são “parte interessada”. No entanto, as áreas protegidas continuam a ter uma estrutura de governança onde a população indígena se encontra subordinada e as decisões finais são responsabilidade da burocracia estatal.
A conservação e proteção ambiental efetiva precisam de um caminho alternativo. As vozes indígenas não devem ser apenas ouvidas, mas seus conhecimentos e práticas tradicionais deveriam ser a base do debate. O funcionamento das áreas protegidas deve basear-se no direito da autodeterminação dos povos. Seu estabelecimento e gestão exigem o consentimento livre e informado.
O Marco de Biodiversidade Global de Kunming-Montreal faz referência ao reconhecimento dos territórios indígenas e tradicionais “quando apropriado”. Os anos por vir mostrarão se isto contribuirá para a apropriação das terras indígenas ou se, ao em vez disso, realmente reconhecerá a relevância dos povos indígenas para a conservação.