Por uma Declaração de Direitos dos Povos Afrodescendentes: Um exercício de autonomia e autodeterminação

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Nascidas no calor da conquista e do tráfico de escravos, as comunidades negras da América desenvolveram práticas culturais próprias que as diferenciam do restante da população. Suas músicas, sua religiosidade e sua alegria são as características mais representativas de 170 milhões de pessoas que compõem uma comunidade transnacional nativa. Após o avanço da jurisprudência nacional, agora é a vez das normativas internacionais reconhecerem o avanço dos direitos coletivos dos povos afrodescendentes. Os povos negros do mundo exigem uma declaração de direitos sobre o reconhecimento, a justiça e o etnodesenvolvimento do nosso povo.

Nascidas no calor da conquista e do tráfico de escravos, as comunidades negras da América desenvolveram práticas culturais próprias que as diferenciam do restante da população. Suas músicas, sua religiosidade e sua alegria são as características mais representativas de 170 milhões de pessoas que compõem uma comunidade transnacional nativa. Após o avanço da jurisprudência nacional, agora é a vez das normativas internacionais reconhecerem o avanço dos direitos coletivos dos povos afrodescendentes. Os povos negros do mundo exigem uma declaração de direitos sobre o reconhecimento, a justiça e o etnodesenvolvimento do nosso povo.

Em 31 de agosto de 1920, o ativista afroamericano jamaicano Marcus Garvey proclamou a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Negros do Mundo na cidade de Nova Iorque. Um feito que veio três décadas antes da Declaração Internacional dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948. Hoje, no âmbito do Decênio Internacional dos Afrodescendentes, prepara-se uma declaração mundial sobre os direitos das pessoas afrodescendentes.

O projeto deve ser uma evolução do direito internacional. Por tanto, teria que ser uma Declaração de Direito dos Povos Afrodescendentes, pois uma declaração das “pessoas afrodescendentes” constitui um espaço já conquistado. Lembremos que, após a abolição da escravidão na segunda metade do século XIX, os descendentes de africanos iniciaram um caminho para serem reconhecidos como pessoas com direitos civis e políticos, Ao menos, esse foi o legado do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos e do fim do apartheid na África do Sul.

Hoje, no século XXI, ao mesmo tempo que é essencial para os afrodescendentes estabelecer garantias de direitos humanos subjetivos (especialmente o direito à igualdade e à não discriminação), é também importante estabelecer um reconhecimento como cidadãos culturais e como povos, na mesma dimensão dos povos indígenas.

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Concentração em Harlem (Nova Iorque) da Universal Negro Improvement Association (UNIA), liderada por Marcus Garvey em 1920. Foto: Centro Schomburg de Pesquisa em Cultura Negra

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Concentração em Harlem (Nova Iorque) da Universal Negro Improvement Association (UNIA), liderada por Marcus Garvey em 1920. Foto: Centro Schomburg de Pesquisa em Cultura Negra

A afrodescendência das Américas e as razões para serem reconhecidos como povos

A proposta de uma Declaração dos Povos Afrodescendentes tem o seguinte ponto de partida: somos mais de 170 milhões de afrodescendentes nas Américas. Isto significa que os negros que vivem neste continente são uma expressão civilizacional original, uma comunidade transnacional nativa e, finalmente, um povo pré-existente à formação dos Estados Nacionais Latino-americanos e Caribenhos.

As populações e comunidades de afrodescendentes, oriundas do tráfico de escravos africanos nas Américas, constituem um civilização nova, de caráter singular, cujas características são produtos de um processo de desconstrução e reconstrução do ethos civilizatório das nações africanas. Os afrodescendentes foram escravizados, convertidos em negros e, em seguida (mediante processos complexos de aculturação, reculturação e interculturação) desenvolveram criações mentais autênticas que são únicas e próprias da América.

A cultura garífuna é a expressão mais viva de nossa originalidade como povo étnico e culturalmente diferenciado dos demais. É uma cultura ancestral que conseguiu a síntese das expressões africanas, arawaks e caribes.

A cultura garífuna é a expressão mais viva de nossa originalidade como povo étnico e culturalmente diferenciado dos demais.

A evidência mais clara de que os afrodescendentes das Américas são um povo originário se sustenta nas criações do nosso patrimônio imaterial e material que não existe em outras latitudes do planeta. Nossas expressões religiosas, mágicas, médicas, poéticas, literárias, musicais, linguísticas, dançantes, funerárias e simbólicas comprovam isso.

Por exemplo, a cultura garífuna é a expressão mais viva de nossa originalidade como povo étnico e culturalmente diferenciado dos demais. O povo Garífuna, ao qual pertencia nosso líder Celeo Álvarez Cacildo, é uma cultura ancestral que conseguiu a síntese das expressões africanas, arawaks e caribes. Os garífunas são afrodescendentes com sua própria língua, sistema de crenças religiosas e sua estrutura de parentesco. Além de suas práticas culinárias particulares, ainda preservam suas técnicas ancestrais de agricultura e pesca.

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No Mar do Caribe, a cultura garífuna se destaca pelo reconhecimento de suas músicas e danças. Foto: De Nicarágua

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No Mar do Caribe, a cultura garífuna se destaca pelo reconhecimento de suas músicas e danças. Foto: De Nicarágua

Uma identidade cultural que atravessa toda a América

Na região do Mar do Caribe coexistem dezenas de povos afrodescendentes com configurações culturais influenciadas por seus processos de escravidão e colonização. Entre os povos com grande conservação africana se destacam o Palanque de San Basilio na Colômbia, as comunidades quilombolas no Brasil ou os maroon no Suriname e nas Guianas, onde estão os lendários Saramakas. Destacam-se também os raizales das ilhas de San Andrés e Providencia na Colômbia e, os ingleses negros das Ilhas da Baía em Honduras, Panamá, Nicarágua, Guatemala e Costa Rica.

No Caribe, os povos afrodescendentes desenvolveram um sentido rítmico, poético e literário de grande herança africana. Encontramos nossas próprias fusões musicais como o Rhythm and blues, o calypso e o reggae. Este último tem sido um gênero popular que deu a volta ao mundo e teve Bob Marley como o principal protagonista. Nesse mesmo sentido, também há a salsa, rumba, son, merengue, chachachá, bomba, plena e bachata.

Brasil tem uma cultura afrodescendente incomparável: suas religiões de matriz africana, suas comidas, música e danças nos recordam que os afrodescendentes das Américas são uma civilização nascida na modernidade escravista.

Brasil tem uma cultura afrodescendente incomparável que nos recorda que os afrodescendentes são uma civilização nascida na modernidade escravista.

No mesmo nível, destaca-se a religiosidade afroamericana, a começar pelo rastafarismo e a religiosidade cubana com a Regra de Palo Monte, a Regra de Ocha e a Sociedade secreta de Abakúa. No Haiti, um país com uma explosão cultural originária afrodescendente, temos o crioulo haitiano como língua original e o vudu como religião de Estado. No Pacífico Sul-americano, destacam-se a música e a religiosidade popular: o ritual da morte na região colombiana de Chocó; as festas dos santos e virgens no Pacífico colombiano e equatoriano; a música e as danças de Currulao, Marimba, bullerengue e a champeta na Colômbia; e a música e dança de Bomba e de Bandamocha no Valle del Chota equatoriano. Finalmente, mais ao sul, encontramos os sons do cajón afroperuano, a saya afroboliviana e os tambores do candomblé uruguaio.

Para fechar, é necessário dedicar uma seção ao realismo mágico do Brasil, onde 52% de sua população é descendente de escravos africanos. O gigante latino-americano tem uma cultura afrodescendente incomparável: suas religiões de matriz africana, suas comidas, músicas, danças e o culto da alegria nos lembram que os afrodescendentes das Américas são uma civilização nascida na modernidade escravista. Esta história exige um reconhecimento como identidade cultural coletiva, como povo originário das Américas ou, melhor dito no plural: como povos. O nosso projeto de Declaração de Direitos dos Afrodescendentes não pode ignorar esta realidade.

Ser reconhecido como povo: a demanda do movimento social

Em 2012, o intelectual afrocostarriquenho Quince Duncan argumentou que a inscrição de pessoas vai além de raça e etnia, pois a cultura afrodescendente engloba uma pan-etnia, ou seja, uma comunidade transnacional. Desde então, os afrodescendentes das Américas são um povo com “elementos culturais que configuram uma civilização”: origem territorial comum, uma matriz espiritual compartilhada, um sistema de miscigenação total, a experiência da escravidão, a discriminação devido ao racismo doutrinário e os grupos históricos de resistência.

O caráter do povo afrodescendente poderia ser interpretado como um ponto central das demandas de seu movimento social. Basicamente, existe a consideração jurídica de povo no sentido estabelecido pela Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989. O argumento baseia-se no fato de que os afrodescendentes das Américas, assim como os povos indígenas, cumprem com os requisitos estabelecidos pelos artigos 1º e 2º para serem reconhecidos como povo: possuem condições sociais, culturais e econômicas que os distinguem; são regidos por seus próprios costumes; descendem de populações que habitaram a região durante a conquista; e têm consciência de sua identidade comum.

O precedente mais imediato nas Nações Unidas para o reconhecimento dos afrodescendentes como povo pode ser encontrado na Declaração da Conferência Regional de Santiago em 2000, que foi preparatória para a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Durban em 2001. O documento final considerou o conceito de “povos de descendência africana”, no qual abriu uma condição jurídica para a reivindicação de seus direitos humanos coletivos.

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San Basilio del Palenque foi o primeiro povo de africanos livres na Colômbia. Suas danças e sua cultura são, hoje, um atrativo para o turismo cultural. Foto: Milena Conrado

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San Basilio del Palenque foi o primeiro povo de africanos livres na Colômbia. Suas danças e sua cultura são, hoje, um atrativo para o turismo cultural. Foto: Milena Conrado

Um reconhecimento que avança nas Américas

Um aspecto a ser considerado pelos afrodescendentes como povo é a jurisprudência de cada país. Na Colômbia, a Reforma Constitucional de 1991 permitiu que os afrodescendentes fossem reconhecidos como comunidades negras com direitos sobre o território ancestral das florestas da região do Pacífico. Mais tarde, as novas constituições da República do Equador e do Estado Plurinacional da Bolívia deram o status de povo aos afrodescendentes e, portanto, reconheceram direitos coletivos sobre suas terras, identidade e participação política.

Nos últimos anos, a jurisprudência nacional seguiu avançando em toda América Latina. Em 2019, a Constituição do México se reformou para reconhecer o status de povos aos afromexicanos, ao mesmo tempo que Chile aprovou uma lei de reconhecimento de povo tribal aos afrodescendentes da região de Arica. Finalmente, em 2002, o Governo de Costa Rica emitiu um decreto de reconhecimento de povo tribal aos afrocostarriquenhos.

Estamos diante de uma nova geração de direitos e por isso solicitamos um projeto de declaração que represente as aspirações dos povos e da jurisprudência.

Solicitamos um projeto de declaração que represente as aspirações dos povos e da jurisprudência.

O contexto evidencia que os direitos humanos estão em evolução e, portanto, o direito internacional não pode ignorar as realidades das populações. Estamos diante de uma nova geração de direitos e por isso solicitamos um projeto de declaração que represente as aspirações dos povos e da jurisprudência. Lembremos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) já haviam se pronunciado a respeito dos afrodescendentes representarem uma coletividade sujeita de direito, ou povo tribal, comunidade étnica ou minoria nacional; e em consequência, são sujeitos de direitos coletivos.

Além disso, as bases que poderiam apoiar uma declaração de direitos do povo afrodescendente foram estabelecidas na Recomendação 34 (2011) do CERD. Este instrumento incorpora o conceito de afrodescendentes da Declaração e o Programa de Ação de Durban para estabelecer que, seja individualmente ou comunitariamente, os afrodescendentes possuem direitos de exercer um conjunto de quatro blocos de direitos e medidas especiais sem discriminação.

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Celebração de Keti Koti em Paramaribo. Todo 1° de Julho, os afrodescendentes comemoram a abolição da escravidão no Suriname e nas Antilhas Holandesas em 1863. Foto: Iwan Brave

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Celebração de Keti Koti em Paramaribo. Todo 1° de Julho, os afrodescendentes comemoram a abolição da escravidão no Suriname e nas Antilhas Holandesas em 1863. Foto: Iwan Brave

Rumo ao reconhecimento e à justiça dos povos afrodescendentes

Em suma, das Américas solicitamos que o projeto de Declaração de Direitos dos Povos Afrodescendentes retome o sentido que Marcus Garvey havia proposto em 1920: uma declaração de direitos dos povos negros do mundo. Por isso, em consonância com a proposta do Pastor Murillo, especialista independente do Fórum Permanente dos Afrodescendentes, consideramos que é necessário garantir os direitos coletivos vinculados ao reconhecimento, à justiça e ao etnodesenvolvimento das comunidades afrodescendentes.

I. Direitos ao reconhecimento

  • Direito ao reconhecimento como povos a todas as pessoas e comunidades que assim se identifiquem, se autodeterminem e, consequentemente, possuem direitos coletivos.
  • O direito ao reconhecimento e autonomia de seus territórios ancestrais.
  • O direito à propriedade e o direito ao uso, à conservação e à proteção de terras ocupadas tradicionalmente e que seus modos de vida e sua cultura estejam vinculados à utilização dessas terras e recursos naturais.
  • O direito à sua identidade cultural e à sua manutenção, salvaguarda e promoção de suas formas de organização, cultura, línguas e expressões religiosas.
  • O direito à proteção de seus conhecimentos tradicionais e seu patrimônio cultural e artístico.
  • O direito de decidir sobre seus conhecimentos, inovações e práticas tradicionais associados aos recursos genéticos.
  • O direito de ser consultado previamente quando forem tomadas decisões que possam afetar seus direitos, de acordo com os padrões internacionais.

II. Direitos à Justiça

  • Direitos à igualdade e não discriminação dos afrodescendentes diante das instituições de justiça e seus tribunais.
  • Direito à reparações por terem sido vítimas do tráfico escravista e por terem sido explorados para gerar riqueza para fortalecer o capitalismo.
  • Direito a medidas especiais ou ações afirmativas para igualdade de acesso aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
  • Direito a medidas especiais para combater a discriminação racial por parte da polícia.
  • Direito à prevenção e o combate do preconceito algorítmico e a discriminação em inteligência artificial (IA).
  • O direito de se beneficiar do patrimônio cultural subaquático e dos tesouros transportados pelos galeões dos escravistas durante o tráfico de escravos.

III. Direitos sobre o etnodesenvolvimento das comunidades afrodescendentes

  • Direitos à serviços de água potável, eletricidade, esgoto, internet, aquecimento, infraestrutura viária, serviços de saúde e educação nas comunidades.
  • Direito à participação política, reconhecendo personalidade jurídica de natureza eleitoral e cotas para representação direta nos parlamentos.
  • Direito aos benefícios econômicos por uso e conservação dos bosques e práticas que mitigam as mudanças climáticas.
  • Direito das mulheres afrodescendentes ao trabalho e salário igual.
  • Direito ao acesso as tecnologias de informação e benefício dos avanços científicos da humanidade.
  • Direito ao acesso ao ensino superior através de medidas especiais que incluam o acesso dos jovens, a criação de instituições próprias e a divulgação de sua memória cultural e patrimônio histórico.