A luta da aldeia Atopo W+P+ contra uma central eléctrica na Guiana Francesa

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No noroeste da Guiana, a aldeia Kali'na resiste à instalação de uma central eléctrica nas suas terras. Sem respeitar os direitos indígenas ao território, o Estado francês cedeu as terras à corporação HDF Energy e mobilizou um grande número de policiais armados. Os guerreiros Kali'na mantêm forte oposição e defendem a relocalização do projeto.

No noroeste da Guiana, a aldeia Kali’na resiste à instalação de uma central eléctrica nas suas terras. Sem respeitar os direitos indígenas ao território, o Estado francês cedeu as terras à corporação HDF Energy e mobilizou um grande número de policiais armados. Os guerreiros Kali’na mantêm forte oposição e defendem a relocalização do projeto.

Um cheiro pungente invade o ar. Lentamente, o sol se desvanece em um manto laranja e cinzas espalhado pelo céu. A leste de Atopo wipi, uma aldeia indígena Kali’na localizada a cerca de 15 quilômetros de Saint-Laurent-du-Maroni, o concerto da cigarra não pode mais ser ouvido. Os pássaros não cantam. Como outros animais, os pássaros fugiram devido à construção da Central Elétrica da Guiana Francesa Ocidental (Centrale Électrique de l’Ouest Guyanais, CEOG). A empresa promete que será o maior armazenamento de hidrogênio do mundo.

Mais de 20 hectares foram arrancados das terras Kali’na. A exuberante floresta que existia há algumas semanas foi transformada em um deserto árido: a terra está coberta de cadáveres de pássaros e lagartos. Uma barricada de árvores mortas cerca a área: foram empilhadas por máquinas para dar lugar à futura central eléctrica. No céu, a fumaça se adensa e as cinzas rodopiam com mais força, impulsionadas pelo vento.

Os jovens “guerreiros” Kali’na, alguns com menos de 18 anos, atearam fogo às poucas toras espalhadas pelo chão para evitar o lucro da sua venda. Impotentes diante da destruição de suas terras, eles aproveitam uma pausa temporária nos trabalhos para fiscalizar a área. “É doloroso porque esta terra é como a nossa segunda mãe”, observa com tristeza um dos guerreiros.

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Os guerreiros kali’na recolhem as arvores mortas acumuladas e as queimam para evitar que a madeira de sua floresta seja vendida. Foto: Pierre Auzerau

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Os guerreiros kali’na recolhem as arvores mortas acumuladas e as queimam para evitar que a madeira de sua floresta seja vendida. Foto: Pierre Auzerau

Uma potência que se nega a reconhecer os direitos indígenas

A aldeia Atopo (“povo das colinas”) foi criada quando um grupo de Kali’nas fugiu da guerra civil do Suriname há aproximadamente 40 anos. A aldeia está localizada em terras que historicamente pertenceram aos Kali’na e outros povos indígenas, até que, no início do século XVI, foram devastados pelas invasões europeias. Atualmente, Atopo Wipi abriga 230 pessoas, é a única aldeia que conseguiu resistir à urbanização e se destaca por ainda falar a língua Kali’na, mesmo entre os jovens.

Durante anos, os membros da comunidade tentaram alcançar a plena auto-sustentabilidade: foram construídas uma torre de água abastecida por uma nascente próxima e uma escola primária bilíngue que ensina em Kali’na e Francês; a moradia e os recursos alimentares são obtidos principalmente da terra; Além disso, um galinheiro e plantações de mandioca colaboram com a manutenção da comunidade. Embora planejassem construir um forno de pão, o caminho para a auto-sustentabilidade foi severamente dificultado pelo projeto da central eléctrica. Agora, os aldeões passam a maior parte do tempo defendendo suas terras

O mesmo que 95% das terras da Guayana, o território de Atopo WiPi es propriedade do Estado francês já que, em 1946, foi assimilado como um departamento ultramarino da França e União Europeia.

O território de Atopo WiPi es propriedade do Estado francês já que, em 1946, foi assimilado como um departamento ultramarino da França e União Europeia.

O terreno de 140 hectares onde a empresa de energia a hidrogénio pretende construir o CEOG foi originalmente atribuído pelo Gabinete Florestal Nacional. Apesar do apoio da França à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2007, o Estado rejeita o reconhecimento dos seus direitos distintos, citando fundamentos constitucionais. De acordo com a Constituição de 1958, a França é uma República “indivisível” que garante “a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem, raça ou religião”.

Portanto, quando o lote de 140 hectares do território Atopo WiPi foi cedido à HDF Energy, o direito dos moradores ao Consentimento Livre, Prévio e Informado foi ignorado. Além disso, a empresa não era legalmente obrigada a considerar áreas além do raio de um quilômetro ao redor do futuro projeto. Assim como 95% das terras da Guiana, o território de Atopo Wipi é propriedade do Estado francês desde que, em 1946, foi assimilado como departamento ultramarino da França e da União Europeia.

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O território de Atopo WiPi está localizado em uma vasta floresta rica em fauna e flora e que antigamente era assombrada. Foto: Pierre Auzerau

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O território de Atopo WiPi está localizado em uma vasta floresta rica em fauna e flora e que antigamente era assombrada. Foto: Pierre Auzerau

A implantação da gendarmaria

Os habitantes de Atopo Wipi reconhecem que a Guiana tem a necessidade de aumentar e diversificar a sua produção de energia, que atualmente se baseia num parque gerador de energia poluente e muito antigo. De fato, os 290.000 residentes do departamento ultramarino francês sofrem com cortes de energia e entendem que a implementação de projetos como o CEOG é necessária. No entanto, os moradores dizem que deveriam ter sido consultados porque a central fica a menos de dois quilómetros da aldeia e afeta locais de caça, pesca e banhos. Além disso, a área abriga seres terrestres importantes para os Kali’na, ao mesmo tempo que se cortariam árvores que eles consideram “sagradas”.

Dos 140 hectares atribuídos pelo Gabinete Florestal Nacional, 75 devem ser desmatados para o projeto HDF Energy e cerca de 16 hectares já foram devorados por escavadoras durante o inverno de 2022-2023. Uma por uma, as árvores foram derrubadas como gravetos, apesar da forte resistência dos guerreiros Kali’na que tentaram impedir fisicamente as escavadeiras. Após a sua firme oposição, o Estado francês enviou unidades da gendarmaria para abrir a passagem, o que resultou em confrontos.

Por sua vez, a prisão de Yopoto (chefe Kali’na) Roland Sjabere durante a madrugada de 24 de outubro de 2022 afetou profundamente a comunidade. Os confrontos persistiram até ao início de Março de 2023, quando o confronto escalou ao ponto em que os trabalhos foram interrompidos.

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Esquerda: A floresta cheia de cartuchos de gás lacrimogênio, os quais foram recolhidos pelos kali’na para evitar a contaminação. Direita: A construção do CEOG contamina a terra e agua de que dependem em Atopo W+P+ Fotos: Pierre Auzerau

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Esquerda: A floresta cheia de cartuchos de gás lacrimogênio, os quais foram recolhidos pelos kali’na para evitar a contaminação. Direita: A construção do CEOG contamina a terra e agua de que dependem em Atopo W+P+ Fotos: Pierre Auzerau

A resistência dos guerreiros kali’na

Apesar de uma breve trégua, as operações foram retomadas em 16 de agosto de 2023, resultando numa situação desastrosa. Desde então, o número de máquinas e policiais se multiplicou. Os moradores relatam ver até oito escavadeiras por dia no local da usina, acompanhados por mais de 50 policiais e seguranças privados. Por outro lado, a resistência Kali’na é composta por 10 a 20 guerreiros.

Desde o início do projeto, 20 pessoas foram presas e detidas, incluindo guerreiros e pessoas não locais que prestam apoio. Um guerreiro Kali’na de 20 anos de Atopo W+p+ diz: “Me sinto estressado e perseguido: drones sobrevoam a aldeia à noite para nos monitorar, encontrámos câmaras escondidas e também fomos perseguidos por gendarmes com cães. “Alguns deles se camuflam na floresta para nos prender e até apontaram suas armas para nós”.

Melissaa lembra das palavras do doretor de CEOG:” inclusive, mesmo que alguns de vocês tenham que morrer, CEOG continuará”.

Melissaa lembra das palavras do doretor de CEOG:” inclusive, mesmo que alguns de vocês tenham que morrer, CEOG continuará”.

O governo francês esta designando recursos significativos para garantir a conclusão bem sucedida do projeto. “Eles têm gás lacrimogêneo, granadas de atordoamento e desmantelamento, mas também espingardas de bala de borracha”, descreve Melissa, sobrinha de Yopoto Sjabere. Ela se lembra das palavras do diretor da Central Elétrica da Guiana Francesa Ocidental: “inclusive, mesmo que alguns de vocês tenham que morrer, o CEOG continuará”. Para se protegerem, os guerreiros Atopo WiPi respondem usando pedras, paus e estilingues. Recentemente, começaram a fazer coquetéis molotov em resposta à brutalidade policial

“A central é motivo suficiente para ameaçar jovens com espingardas, perseguir e traumatizar uma cidade inteira, incluindo meninos e meninas?”, pergunta Melissa, irritada. Pelo menos três menores adoeceram e foram hospitalizados devido ao gás lacrimogêneo disparado pelos policiais, resultando em dores de cabeça e problemas respiratórios. “O médico aconselhou a apresentar queixa, mas sabemos que não terá sucesso porque o Estado apoia os gendarmes”, diz o guerreiro Kali’na, de 20 anos.

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As arvores que estão marcadas logo serão cortadas. Foto: Pierre Auzerau

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As arvores que estão marcadas logo serão cortadas. Foto: Pierre Auzerau

A recusa da solicitação de relocalização do projeto

No início de Setembro, Yopoto Sjabere procurou proteger o seu povo da violência futura, propondo um acordo a Antoine Poussier, o préfet da Guiana (representante Estado). Sabendo que o direito do povo ao Consentimento livre, prévio e informado foi violado e que o Estado ignorou vários direitos territoriais dos habitantes (DNUDPI, Artigo 2 b, Artigo 26, entre outros), Roland Sjabere propôs ao Estado que o restante do projeto seja movido para o leste em vez de para o norte, conforme planejado originalmente. Este passo em frente foi dado para proteger o coração do território Atopo WiPi. A área sul do CEOG, já devorada pelas escavadoras, é delimitada a norte por um riacho que atravessa as terras do Atopo WiPi. Proteger este limite natural tinha um duplo propósito e explica a resignação do Yopoto: este riacho não é apenas um ekupi dipo, local de banhos, mas a norte se encontram zonas de reunião e caça cruciais para a manutenção do modo de vida tradicional dos habitantes.

O pedido foi rejeitado na noite de 17 de setembro, causando consternação entre os moradores do Atopo WiPi. Após uma breve pausa, durante a qual os trabalhos foram temporariamente interrompidos enquanto o préfet analisava a solicitação de Yopoto, as operações de compensação do CEOG foram retomadas com maior intensidade perto da cidade. Os trabalhadores estão agora no local durante toda a semana sob forte vigilância e determinados a recuperar mais de um ano de atrasos causados ​​pelo Kali’na.

“Muitos animais já desapareceram das nossas terras. Fugiram para o norte para escapar da construção e do gás lacrimogênio”.

“Muitos animais já desapareceram das nossas terras. Fugiram para o norte para escapar da construção e do gás lacrimogênio”.

“Estamos muito tristes. Já estamos percebendo poluição no riacho, onde nadamos e bebemos quando estamos na floresta”, observa Melissa, uma guerreira Kali’na. A jovem de 22 anos, que está completando seu serviço cívico na associação municipal, também está preocupada com o declínio da vida animal e vegetal: “Muitos animais já desapareceram das nossas terras. A onça que costumava viver nessas terras já se foi. Aves, lagartos, cutias, tatus e quatis morreram. As plantas que usamos para fins medicinais também estão desaparecendo”.

Os jovens Kali’na de Atopo W+p+ estão preocupados com o seu futuro. Embora o Estado francês devesse garantir que eles estão “livres de qualquer tipo de discriminação” (DNUDPI, Artigo 2), vários dos seus pedidos de formação profissional apresentados à Câmara Municipal de Saint-Laurent-du-Maroni foram rejeitados porque “vêm da Prospérité”. A associação da aldeia enfrentou uma situação semelhante ao tentar garantir financiamento estatal. É em situações como essa que a floresta ganha ainda mais importância, pois é “o que alimenta e cura o povo do Atopo WiPi”, explica Melissa. Foi isso que a manteve viva ao longo dos anos e continuará mantendo até ao fim: “Só posso agradecer a esta floresta. Isso me deu força. Quando estou na floresta, converso com ela, digo que não vou fazer mal e que estou ali pra protege-la”.

Pierre Auzerau é um pesquisador doutoral nos Departamentos de Antropologia e Estudos Indígenas da Universidade de Helsinque, Finlândia. Através de uma pesquisa inclusiva, seu projeto atual avalia e documenta a busca de reconhecimento legal dos povos indígenas da Guiana “Francesa”, concentrando na sua experiência e o uso das leis. Inspirado em perspectivas e teorias, seu trabalho se esforça para adotar práticas e métodos que desafiem as relações coloniais e raciais da pesquisa.