Agarrando-se ao colonialismo: o Estado da Guatemala e a expropriação dos povos indígenas

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Os discursos e ações contra os indígenas seguem presentes no país centroamericano. O governo guatemalteco implementa políticas de assimilação, diminui o orçamento de organizações relacionadas aos direitos humanos, não realiza consultas prévias e não respeita os direitos territoriais. Ao mesmo tempo, o estado de sitio é um método recorrente para reprimir o protesto social, o chamado “pacto corrupto” avança na impunidade, o racismo se consolida em forma de desigualdade econômica e marginalização política.

Os discursos e ações contra os indígenas seguem presentes no país centroamericano. O governo guatemalteco implementa políticas de assimilação, diminui o orçamento de organizações relacionadas aos direitos humanos, não realiza consultas prévias e não respeita os direitos territoriais. Ao mesmo tempo, o estado de sitio é um método recorrente para reprimir o protesto social, o chamado “pacto corrupto” avança na impunidade, o racismo se consolida em forma de desigualdade econômica e marginalização política.

“Nada a comemorar”. Com esta palavra de ordem, os povos indígenas da Guatemala manifestaram seu repúdio a comemoração oficial dos 200 anos da independência centroamericana. Para as comunidades, os discursos e práticas colonialistas, como expropriação, racismo, negacionismo e violência, continuam prevalecendo na sociedade. Ao se apegar ao colonialismo, o Estado segue vendo os indígenas como uma ameaça à estabilidade e ao progresso rumo à modernidade, negando-lhes, portanto, seus direitos fundamentais.

A obssesão colonialista do Estado Guatemalteco se manifesta em várias dimensões: o retrocesso nos direitos humanos e direitos indígenas; a repressão violenta contra suas manifestações, incluindo a imposição do estado de sitio; a concessão de licenças extrativistas em territórios ancestrais; e as práticas recurrentes de racismo estrutural e exclusão social e política.

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Indígenas de Nahualá no final do século XIX. Foto: A. G. Valdeavellano

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Indígenas de Nahualá no final do século XIX. Foto: A. G. Valdeavellano

O retrocesso dos direitos indígenas na Guatemala

Na narrativa hegemônica os direitos humanos são um obstáculo para o exercício do poder sob o argumento de que restringem a capacidade das forças de segurança de impor a ordem pública e combater o crime. Esse discurso foi assimilado por grande parte da população que reinvidica ações mais contundentes, incluindo a justiça com as próprias mãos e a aplicação da pena de norte. A proposta de reconhecimento da jurisdição indígena, ou seja, a aplicação de justiça com base em sua própria cultura e valores, não foi aprovado sob o argumento de que deve prevalecer o estado de direito e a institucionalidade jurídica oficial.

A supressão da parte da institucionalidade no campo dos direitos humanos está à vista. A Comissão Presidencial dos Direitos Humanos (COPREDEH) reduziu o orçamento da Procuradoria de Direitos Humanos (PDH) quando o procurador de plantão não está alinhado com os intereses governistas. Com efeito, cooptado pelo partido no poder, o atual PDH não tem levantado a voz para defender os direitos das comunidades indígenas vítimas de despejos violentos das suas terras ancestrais. Tampouco se manifestou contra a criminalização e a repressão sofridas por centenas de líderes e lideranças por defenderem suas terras e bens naturais.

Apesar do país ter ratificado e elevado à categoría constitucional a Convenção 169 da OIT e adotado a Declaração da Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na prática não foram desenvolvidos os instrumentos que permitan a sua implementação. A demanda dos povos indígenas para que o Estado reconheça seus direitos às terras ancestrais tem sido repetidamente ignorada.

As consultas não são prévias à aprovação dos projetos nem vinculativas: na verdade, são um procedimento simples para justificar que o requisito foi cumplido e nunca determinam o cancelamento de um projeto.

O governo abandonou completamente os compromissos assumidos pelo Estado para a construção de uma paz firme e duradoura.

O Tribunal Constitucional decidiu suspender temporariamente os projetos extrativos da Mina San Rafael (da capital canadense) e da Mina Fénix (de capital russo) até que os processos de consulta não sejam cumpridos e seja aprovado um instrumento para realizá- los. No entanto, as consultas não são prévias à aprovação dos projetos nem vinculativas: são um procedimento simples para justificar que o requisito foi cumprido e nunca determinam o cancelamento de um projeto, caso a consulta seja rejeitada. Dessa forma, as empresas seguem operando indepedentemente da aprovação ou rejeição do projeto pela população consultada.

Finalmente, a negação dos direitos ancestrais de posse da terra e atenção aos conflitos territoriais é ainda mais energética. Em 2020, o governo extinguiu a Secretaria de Assuntos Agrários e o Mecanismo de Diálogo Permanente, entidades públicas que, até então, contribuíam para a solução de conflitos sobre direitos a terra. Além disso, as instituições criadas para cumprir os Acordos de Paz assinados em 1996, como a Secretaria de Paz da Presidência da República (SEPAZ) e o Programa Nacional de Compensação (PNR), foram totalmente desmanteladas. Consequentemente, o governo abandonou completamente os compromissos assumidos pelo Estado para a construção de uma paz firme e duradoura.

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Apresentação das proteções perante o Judiciário. Foto: Silvel Elías

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Apresentação das proteções perante o Judiciário. Foto: Silvel Elías

Estados de sítio e criminalização

Na Guatemala, o estado de sítio lembra os excessos cometidos pela policía e pelas Forças Armadas durante o longo conflito armado interno (1960-1996). Embora as cicatrizes permaneçam na memória coletiva, o estado de sítio tem sido um método recorrente para manter a orden em lugares contubardos, seja por disputas de direitos territoriais ou por mobilizações cidadãs contra a imposição de projetos extrativistas. É dispensável dizer que esta disposição restringe as garantias cidadãs de liberdade de mobilização, reunião e organização contidas na Constituição Política da República.

Apesar desta terrível demonstração de força, os conflitos territoriais não tem sido resolvidos porque não são analisadas as suas causas subjacentes, situação que os faz reaparecer a curto prazo. Também não foram modificados os procedimentos de concessão de licenças extrativistas sem consulta, especialmente minas e hidrelétricas, que violam as comunidades e colocam em risco seus meios de subsistencia. Por outro lado, aumentou a repressão e a criminalização dos defensores dos direitos humanos, incluindo líderes indígenas e campesinos, muitos dos quais foram presos ou assassinados.

Paralelamente, a impunidade avança. O governo e os grupos de poder unidos no denominado “pacto corrupto”, formado por ex-funcionários, políticos e empresários acusados de corrupção, conseguiram o fechamento e a expulsão do país da Comissão Internacional contra a Corrupção e a Impunidade na Guatemala (CICIG). Ao mesmo tempo, abriram processos criminais contra investigadores, promotores, advogados e jornalistas que lutam contra a corrupção e agora enfrentam julgamentos por acusações espúrias ou tiveram que pedir asilo no exterior. Isso favoreceu o encerramento de varios casos de corrupção e fortalecimento pelo “pacto corrupto”.

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Marcha indígena contra a corrupção. Foto: Silver Elías

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Marcha indígena contra a corrupção. Foto: Silver Elías

Racismo, exclusão e pobreza estrutural

O discurso e as práticas racistas e excludentes se manifestam de formas sutis na sociedade guatemalteca. Essa situação está na base da profunda desigualdade social que torna os indígenas mais afetados pela pobreza, como mostram os indicadores de renda, educação, saúde e nutrição. Essa desigualdade continua se aprofundando na medida em que não existem leis, políticas públicas ou programas diferenciados para atender os povos indígenas.

A situação poderia começar a mudar a partir do reconhecimento de seus direitos territoriais, à autodeterminação e à construção de seu próprio modelo de desenvolvimento. No entanto, o Estado evita ações diferenciadas nas áreas da educação, justiça, desenvolvimento e recursos naturais, sob o argumento da igualdade dos cidadãos e da narrativa do nacionalismo. Segundo essa visão, não se deve falar de indígenas e ladinos, mas de guatemaltecos com direitos e obrigações iguais. Essa perspectiva ignora a realidade das desigualdades étnicas que afetam a sociedade.

Embora os indígenas guatemaltecos representem 45% da população, sua representação no Congresso da República nunca foi superior a 10%.

Embora os indígenas guatemaltecos representem 45% da população, sua representação no Congresso da República nunca foi superior a 10%.

A exclusão é igualmente evidente em termos de participação política. Embora os indígenas guatemaltecos representem 45% da população, sua representação no Congresso da República nunca foi superior a 10%. Além de não ultrapassar 10% dos deputados, os que chegam também não representam os interesses indígenas, mas sim os intereses dos partidos políticos tradicionais.

As mulheres indígenas são as que mais sofrem com práticas de racismo e exclusão devido a cultura patriarcal dominante no país. Suas vozes e demandas são constantemente invisibilizadas e muitas delas seguem exigindo justiça pelas violencias que sofrem. Cabe destacar que, após muito tempo de luta, nos últimos três anos as mulheres indígenas dos povos Q’eqchi, Ixil e Achí conseguiram que os tribunais condenassem militares e paramilitares que as agrediram sexualmente durante o conflito armado interno.

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A líder Thelma Cabrera em marcha de protesto. Sua candidatura à presidência foi rejeitada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Foto: Mujeres Bacanas

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A líder Thelma Cabrera em marcha de protesto. Sua candidatura à presidência foi rejeitada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Foto: Mujeres Bacanas

Silenciados pelas políticas coloniais

O colonialismo predominante na Guatemala também pode ser observado na nula participação dos povos indígenas na gestão das políticas públicas. A maioria dos instrumentos de gestão governamental não incorporam os avanços das convenções internacionais ratificadas pelo país. As políticas sobre o meio ambiente, florestas, mudanças climáticas, biodiversidade e áreas protegidas não contemplam aspectos relacionados aos seus próprios conhecimentos e formas de uso. Seus esforços de governança também não são reconhecidos, apesar de os indígenas terem se mostrado os verdadeiros guardiões da mãe natureza.

A crise política que o país vive desde 2015, marcada pelo combate à corrupção e seus defensores, trouxe sérias implicações para os povos indígenas. Não só veem retroceder os poucos avanços que haviam feito no reconhecimento de seus direitos. A reorganização do poder paralelo refreou os processos de restituição de terras ancestrais e aumentou a repressão contra as lideranças indígenas que defendem suas terras e territórios da desapropriação e a imposição de projetos extrativistas. A migração de indígenas para o exterior também aumentou consideravelmente. Como se não bastasse, o Tribunal Superior Eleitoral rejeitou o registro da candidatura à Presidência da República, da única mulher indígena que se inscreveu para as eleições de 2023.

De mãos dadas com a crise política, intensificaram-se as práticas colonialistas para silenciar as lutas indígenas. Isso evidencia que o colonialismo segue vigente e vem se renovando como mecanismo para perpetuar a expropriação e os lucros advindos de expropriação. Enquanto o governo e as elites do poder ostentam as comemorações do bicentenário da independência e os processos eleitorais, os povos indígenas continuam excluídos e desapojados de seus direitos. Eles não têm nada para comemorar.