Em 1990, indígenas das Terra Baixas protagonizaram a Marcha por Território e Dignidade com o objetivo de reivindicar seus direitos à terra e ao território. Com a aprovação da nova Constituição Política do Estado em 2009, abriu-se um horizonte jurídico para que os povos Mojeño Trinitario, Mojenõ Ignacio, Chimán, Yucaré e Movima da Amazônia Sul iniciassem seu processo autônomo. Após 12 anos contornando os impasses burocráticos, os povos que compõem o Território Indígena Multiétnico estão aos poucos passos do estabelecimento formal de seu governo autônomo.
Pouco mais de 12 anos se passaram desde que as mulheres e os homens do Território Indígena Multiétnico (TIM) ergueram as bandeiras da autonomia e do autogoverno indígena. A decisão de consolidar o primeiro governo autônomo multiétnico no sul da Amazônia Sul de Bolívia é sem dúvida a ação política mais importante na história dos povos Mojeño Trinitario, Chíman, Yuracaré e Movima no século XXI. Esta ação, de caráter político reivindicativo, tem origem nas mobilizações messiânicas em busca da “Loma Santa” e na defesa do “Bosque Chimanes” que favoreceu a primeira mobilização indígena do país: a Marcha por Território e Dignidade em 1990.
A medida histórica foi tomada tempo depois do processo constituinte (2006- 2008) que resultou na criação do Estado Plurinacional. Em julho de2010, a Assembleia Legislativa Plurinacional sancionou a Lei Marco das Autonomias e Descentralização “Andrés Ibañez” (Lei N° 031). Com esta norma, o país, prematuramente, iniciava o processo de “desconstitucionalização” da nova Constituição.
Contrariamente aos preceitos constitucionais, a Lei Marco determinou que o processo de formação dos Governos Autônomos Indígenas Originários Campesinos (GAIOC) no Estado Plurinacional Comunitário e com Autonomias, deixaria de ser um processo de emancipação e de discussão política para ser reduzido a um acumulo de requisitos e procedimentos administrativos burocráticos. Assim nasce, paradoxalmente, a longa marcha pelas autonomias indígenas.
A Marcha por Território e Dignidade em 1990 iniciou uma etapa de luta dos povos indígenas das Terras Baixas. Foto: La Palabra del Beni
A Marcha por Território e Dignidade em 1990 iniciou uma etapa de luta dos povos indígenas das Terras Baixas. Foto: La Palabra del Beni
Uma corrida de obstáculos
Para o Território Indígena Multiétnico, a longa marcha significou superar mais de 15 obstáculos diante dos quatro órgãos de poder público: Eleitoral, Executivo, Judicial e Legislativo. Atualmente, mais de 30 povos e nações indígenas de toda a Bolívia estão passando pelo procedimento estabelecido pela lei.
Primeiramente, o TIM teve que cumprir os trâmites para obter as resoluções do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) que certificam e atestam o cumprimento das normas e procedimentos próprios dos povos indígenas que habitam o território no momento de: consulta para acesso a autonomia indígena, formação da Assembleia Territorial Autônoma (instancia responsável por elaborar o Estatuto Autônomo de maneira participativa) e aprovação do projeto de Estatuto Autônomo.
Para o Território Indígena Multiétnico, a longa marcha significou superar mais de 15 obstáculos diante dos quatro órgãos de poder público: Eleitoral, Executivo, Judicial e Legislativo.
A longa marcha significou superar mais de 15 obstáculos diante dos quatro órgãos de poder público: Eleitoral, Executivo, Judicial e Legislativo.
No Órgão Executivo, os povos Mojeño Trinitario, Mojeño Ignaciano, Chimán, Yuracaré e Movima tiveram que apresentar uma série de documentos ante o Vice ministério de Autonomias, a instancia responsável de “certificar” o caráter ancestral dos povos e sua capacidade de autogoverno, requisitos que omitiam uma das bases formais da plurinacionalidade boliviana. Perante ao Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) o projeto de Estatuto Autônomo superou o controle prévio de constitucionalidade: as autoridades indígenas demonstraram a compatibilidade da nova norma básica institucional com a Constituição Política do Estado (CPE) de 2009. Finalmente, o TIM precisou defender a sanção da Lei de Criação da Unidade Territorial diante da Assembleia Legislativa Plurinacional, demonstrando a importância do território ancestral como base para as transformações políticas e administrativas requeridas pelo Estado Plurinacional.
Durante os mais de dez anos que durou o processo de autonomia, as comunidades do TIM sofreram a violação sistemática de seus direitos políticos, principalmente, o direito à autodeterminação. Na Bolívia, o cumprimento das disposições constitucionais do marco de autonomia está sujeito na Lei N˚ 031 e em inúmeras normas administrativas de hierarquia inferior. Porém, de fato, depende principalmente da arbitrariedade da burocracia estatal.
Em 2010, o TIM decidiu coletivamente constituir sua autonomia indígena sobre a base de seu território ancestral. Mapa: CEJIS – CPTA
Em 2010, o TIM decidiu coletivamente constituir sua autonomia indígena sobre a base de seu território ancestral. Mapa: CEJIS – CPTA
A longa marcha pela consolidação territorial
Como a primeira experiência de governo indígena multiétnico na Amazônia Sul do país, o TIM enfrentou o desafio de consolidar seu território ancestral. Após a primeira mobilização indígena de 1990, o território foi reconhecido pelo Estado boliviano por meio do Decreto Supremo N˚ 22611. A lei estabelecia que o Bosque Chimanes era composto pelo Terrtório Indígena Chimán, o Território Indígena Multiétnico e uma área de exploração florestal a qual os direitos de uso haviam sido concedidos a favor de sete empresas madeireiras durante um período de20 anos. Passado esse prazo, a área devia ser devolvida a seus legítimos proprietários: os povos Mojeño Trinitario, Mojeño Ignaciano, Chimán, Yuracaré e Movima. Contudo, não foi o que aconteceu e a área das antigas concessões florestais foi declarada como Terra Fiscal disponível, possibilitando a invasão de pessoas desvinculadas ás comunidades.
O desejo de restabelecer o território ancestral como base da futura autonomia indígena estava em risco. Em contradição ao reconhecimento constitucional do domínio ancestral dos povos indígenas sobre seus territórios, as autoridades estatais desconheciam a possibilidade de constituir um governo indígena em uma jurisdição sem título em favor dos povos demandantes da autonomia. Em 2019, após uma série de mobilizações e ações jurídicas, das quais se destaca o exercício da justiça indígena para despejo do assentamento de terceiros (colonizadores, pecuaristas e madeireiros), o Instituto Nacional de Reforma Agraria (INRA) emitiu a resolução de dotação de terras por uma extensão de 183.722.032 hectares. Dessa forma, a nova entidade territorial indígena consolidou sua base territorial com uma superfície total de 541.079.406 hectares.
A apresentação de um recurso de anulação, devido um erro do INRA no processo depuração, significou a recusa da Câmara de Senadores em debater o projeto de Lei de Criação da Unidade Territorial. Entre 2020 e 2021, o conflito agrário construía uma nova barreira para a consolidação da autonomia de base territorial. Finalmente, o desentendimento na Assembleia Legislativa Plurinacional e o Órgão Executivo a respeito da colisão entre o processo agrário e o processo autônomo foi esclarecido pela liderança do TIM. O processo agrário boliviano não foi visivelmente afetado pela consolidação de um governo indígena, pois a autonomia exerce os poderes e competências expressos na Constituição Política do Estado e na lei, respeitando os direitos da propriedade privada individual e coletiva.
Em 2019, a 29 anos após a Primeira Marcha Indígena, o Estado entregou o título das antigas concessões florestais aos povos indígenas do TIM. Foto: CIPCA
Em 2019, a 29 anos após a Primeira Marcha Indígena, o Estado entregou o título das antigas concessões florestais aos povos indígenas do TIM. Foto: CIPCA
Um novo freio á autonomia indígena
O processo de consolidação do governo indígena também foi marcado pela interferência dos órgãos de poder público. Em 2020, em contradição o disposto na Lei N° ˚026 de Regime Eleitoral que estabelece as garantias para o exercício da democracia comunitária “sem interferências ou imposições”, o Tribunal Supremo Eleitoral rejeitou o exercício de autodeterminação das 26 comunidades do TIM para aprovar seu Estatuto Autônomo por normas e procedimentos próprios. Consequentemente, obrigou-as alterar o projeto de norma institucional básica, reconhecido pelo Tribunal Constitucional Plurinacional após o Controle Prévio de Constitucionalidade, apenas com o objetivo de cumprir um critério técnico carente da base jurídica constitucional.
A interferência e imposição do Tribunal Supremo Eleitoral na aprovação do projeto de Estatuto Autônomo foi ampla e claramente reconhecida pelo Tribunal Constitucional Plurinacional na Declaração Constitucional 033/2021.
O atraso no processo de titulação e a intromissão de um órgão estatal no exercício da autodeterminação são apenas uma amostra da complexidade que compreende a longa marcha pelas autonomias indígenas na Bolívia.
O atraso e a intromissão são uma amostra da complexidade que compreende a longa marcha pelas autonomias indígenas na Bolívia.
Desta maneira, o Tribunal Supremo Eleitoral, o órgão habilitado para garantir o exercício da democracia comunitária no país, comprometeu o direito da autodeterminação dos povos indígenas que favoreceu a autonomia do Território Indígena Multiétnico. Não o bastante, também infringiu a norma nacional: uma pratica comum no que se refere aos processos para autonomia indígena.
Esta ingerência no processo de autonomia constitui um claro exemplo da relação subalternidade entre os órgãos de poder público e os povos indígenas que impulsionam o Estado Plurinacional com Autonomias. O atraso no processo de titulação e da futura autonomia indígena do TIM e a intromissão de um órgão estatal no exercício da autodeterminação são apenas uma amostra da complexidade que compreende a longa marcha pelas autonomias indígenas na Bolívia.
O TIM atravessou numerosos obstáculos burocráticos ante o Tribunal Supremo Eleitoral, o Poder Executivo, Judicial e Legislativo. Foto: Debates Indígenas
O TIM atravessou numerosos obstáculos burocráticos ante o Tribunal Supremo Eleitoral, o Poder Executivo, Judicial e Legislativo. Foto: Debates Indígenas
Uma democracia multiétnica autônoma
Após 12 anos, no dia 2 de fevereiro de 2023, a Câmara de Deputados aprovou o tão aguardado projeto de Lei de Criação da Unidade Territorial do Território Indígena Multiétnico. Promulgação da lei é a etapa que antecede a constituição formal do primeiro governo indígena autônomo multiétnico na Amazônia Sul do país, que se materializa com a confirmação dos órgãos de poder da nova entidade governativa: o Órgão Executivo e a Assembleia Legislativa Territorial.
Com base nesta lei, o TIM deverá cumprir com vários requisitos formais para a gestão do governo indígena. Por exemplo, deve abrir uma conta fiscal em que receberão os recursos públicos para o cumprimento de obrigações do novo governo, além de iniciar uma transição dos recursos financeiros, humanos e ativos fixos que se encontram em posse dos governos municipais de San Ignacio de Mojos e Santa Ana del Yacuma. Como parte da autonomia e da reconfiguração territorial do país, o TIM irá se desvincular politica e administrativamente de ambos os municípios.
Por suas características multiétnicas, o TIM é a primeira experiência do país em que cinco formas de democracia comunitária dialogarão no marco de um processo autonômico.
O TIM é a primeira experiência do país em que cinco formas de democracia comunitária dialogarão no marco de um processo autonômico.
Entretanto, neste processo surge uma nova interrupção na longa marcha visto que a Assembleia Legislativa Plurinacional ainda não encaminhou a norma ao Executivo para a promulgação. Isto impede as autoridades tradicionais do TIM consigam avançar na consolidação de seu sonho.
Cumprindo a normativa e o Estatuto Autônomo, as autoridades do Território Indígena Multiétnico, á frente da Subcentral de Conselhos Indígenas devem prepara a convocação e o procedimento de eleição das mulheres e homens responsáveis pela primeira gestão. Neste processo, recai o desafio de desenvolver os mecanismos democráticos próprios que garantam a participação dos cinco povos em igualdade de condições. Por suas características multiétnicas, o TIM é a primeira experiência do país em que cinco formas de democracia comunitária (mojeña ignaciana, mojeña trinitaria, chimán, yuracaré e movima) dialogarão no marco de um processo autonômico.
Cada um dos povos indígenas que constituem o TIM possui suas próprias formas de organização social, cultural e produtiva. Foto: Andrés Unterladstaetter / Ore
Cada um dos povos indígenas que constituem o TIM possui suas próprias formas de organização social, cultural e produtiva. Foto: Andrés Unterladstaetter / Ore
A marcha continua
As autoridades dos povos Mojeño Trinitario, Mojeño Ignaciano, Chimán, Yuracaré e Movima deverão constituir e planejar a gestão da nova entidade territorial com uma visão política e processual. Isto requere um esforço para o estabelecimento de um diálogo construtivo entre a forma de gestão territorial comunitária (Planos de Gestão Territorial) e a forma de gestão pública estatal enquadrada no Sistema de Planejamento Integral do Estado (Planos de Gestão Territorial Comunitário)
Ademais, o Território Indígena Multiétnico enfrentará o desafio de acionar a gestão pública autônoma indígena. Isto supõe um processo de desenho institucional e normativo que permita o exercício gradual das faculdades e competências. O horizonte é transcender o atual modelo de gestão pública centralista (herdado do municipalismo) até alcançar uma forma de gestão pública intercultural e plurinacional. A aposta é promover as mudanças estruturais ao modelo do Estado Plurinacional Comunitário desde uma das autonomias indígenas mais ricas em diversidade étnica, política e cultural.
Para além pensar que a longa marcha, pela autonomia indígena chegará ao seu fim com a posse do novo governo indígena de base territorial no TMI, este é apenas mais um passo para os povos Mojeño Trinitario, Mojeño Ignaciano, Chimán, Yuracaré e Movima no caminho de consolidar o Estado Plurinacional Comunitário e com Autonomias. Sem dúvida, a marcha continua.
Miguel Vargas Delgado é Diretor Executivo do Centro de Estudos Jurídicos e Pesquisas Sociais (CEJIS), Bolívia.