O povo Aché habitou, durante séculos, as extensas selvas orientais do Paraguai. Sua história é marcada por sangue, fogo e desapropriação. A vida de Kryýgi não escapou desta dinâmica: após assassinar sua família, batizaram-na de Damiana, foi obrigada a trabalhar como empregada doméstica e logo foi levada à Argentina. Com a chegada da adolescência, foi internada em um hospital neuropsiquiátrico, onde morreu de tuberculose. O destino de seus restos não foi dos melhores. Enquanto seu esqueleto se perdeu no Museu de La Plata, seu crânio acabou em uma universidade alemã. Um século depois, o povo Aché conseguiu restaurar seu corpo e devolvê-lo à floresta, de onde nunca deveria ter saído.
O povo Aché habitou, durante séculos, as extensas selvas orientais do Paraguai. Sua história é marcada por sangue, fogo e desapropriação. A vida de Kryýgi não escapou desta dinâmica: após assassinar sua família, batizaram-na de Damiana, foi obrigada a trabalhar como empregada doméstica e logo foi levada à Argentina. Com a chegada da adolescência, foi internada em um hospital neuropsiquiátrico, onde morreu de tuberculose. O destino de seus restos não foi dos melhores. Enquanto seu esqueleto se perdeu no Museu de La Plata, seu crânio acabou em uma universidade alemã. Um século depois, o povo Aché conseguiu restaurar seu corpo e devolvê-lo à floresta, de onde nunca deveria ter saído.
“A vida dos mortos vive na memória dos vivos”.
Cicerón
“A vida dos mortos vive na memória dos vivos”.
Cicerón
Desde a invasão espanhola na região, na primeira metade do século XVI, existem relatos de perseguições, caçadas humanas e sequestros de meninos e meninas, com o objetivo de serem utilizados para servidão ou experimentos científicos. Esta prática tornou-se muito comum entre as décadas de 50 e 70, quando a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) aplicou a ordem marcial de sedentarização obrigatória em nome do progresso. A consequência direta dessa medida foi o chamado genocídio Aché.
Um século depois de terem sido sequestrados, no entardecer do dia 11 de junho de 2010, o esqueleto de uma menina sem cabeça e o crânio de um adulto, provenientes do Museu de La Plata, localizado na Argentina, chegaram à comunidade de Ypetĩmi (a 205 quilômetros da capital Assunção). Após uma cerimônia profundamente sentida, no dia seguinte, um pequeno grupo conduziu os restos mortais para sepultamento nas montanhas do seu antigo ekõandy (território de existência e vivência).
Por fim, o crânio da menina só voltaria em maio de 2012 do Hospital Charité, em Berlim. A partir dos ossos trazidos da Argentina e Alemanha, a menina foi identificada pelos atuais Aché como kryýgi (Tatu-da-Montanha). O outro esqueleto, ao contrário, pertenceu à um trabalhador Aché que trabalhava nas roças de Taba’i e foi assassinado com machadadas na cabeça, que ainda espera recuperar sua identidade ancestral.
Fotografias e restos de Kryýgi durante a cerimônia de recuperação. Foto: Infojus
Retrato de Kryýgi na Villa Encarnación. Foto: Herman Ten Kate e Charles de la Hitte
O início da tragédia
Em setembro de 1896, na região de Villa Encarnación (atual departamento de Itapúa), um grupo de colonos emboscou uma família Aché reunida em torno de uma fogueira na serra. Os acusaram de terem matado um cavalo. Na briga, assassinaram uma mulher que trazia consigo uma menina de 3 a 4 anos que saiu ilesa e foi levada como criada em uma fazenda. Ali foi batizada como Damiana: o nome da Santa que corresponde ao dia 27 de setembro, dia em que sua família foi assassinada. Nesse mesmo ano, os restos da possível mãe foram recuperados in situ pelo holandês Herman Ten Kate e o francês Charles de la Hitte, o chefe e o assistente da Seção Antropológica do Museu de La Plata. Ambos também puderam realizar as primeiras observações, medições e fotografias da menina, reparando seu estado de tristeza.
Em 1898, por intermediação de De la Hitte, a menina foi levada do Paraguai até San Vicente, província de Buenos Aires, Argentina, como criada de uma família de origem alemã chamada Korn. Quando chegou à adolescência, em 1907, internaram-na em um hospital psiquiátrico, sob os cuidados do médico Alejandro Korn, ao considerar que seu comportamento sexual, livre e irreprimível, deveria ser punido e corrigido. O hospital neuropsiquiátrico ficava perto da cidade de La Plata, no município de Melchor Romero. Foi ali que o então chefe da Seção Antropológica do Museu de La Plata, o alemão Roberto Lehmann-Nitsche, estudou, despiu e tirou fotografias da menina, sendo os últimos e valiosos registros de sua existência.
O crânio e cérebro foram enviados à Sociedade Antropológica de Berlim “para um estudo especial”, pelo professor Hans Virchow, que os recebeu em janeiro de 1908, agradecendo o que considerou um “presente maravilhoso”.
O crânio e cérebro foram enviados à Sociedade Antropológica de Berlim “para um estudo especial”, pelo professor Hans Virchow, que considerou um “presente maravilhoso”.
Em 1907, Kryýgi faleceu de tuberculose, oprimida pela solidão em um mundo desconhecido no qual ela entrou violentamente e contra sua vontade. Seu corpo foi abusado em nome da ciência, submetido à autopsia, medido e decapitado. Seu tronco e extremidades permaneceram em La Plata. O destino de seus outros órgãos é desconhecido. O crânio e cérebro foram enviados por Lehmann-Nitsche à Sociedade Antropológica de Berlim “para um estudo especial”, pelo professor Hans Virchow, que os recebeu em janeiro de 1908, agradecendo o que considerou um “presente maravilhoso”.
Somente em 1913, Lehmann-Nitsche incorporou o esqueleto sem cabeça de Kryýgi à coleção do Museu de La Plata, motivo pelo qual deixou de pertencer à sua coleção de estudos particulares. O cabelo e pele foram mal registrados até serem encontrados e identificados no Museu de La Plata (sua recuperação ainda está pendente). Por sua vez, o crânio foi incorporado ao Instituto de Anatomia da Faculdade de Medicina de Berlim, dois anos depois de ter sido recebido, dissecado e estudado.
Cerimônia de restituição do crânio de Kryýgi no Museu das Memórias de Assunção em 2012. Foto: Colectivo Guias
Cerimônia de restituição do crânio de Kryýgi no Museu das Memórias de Assunção em 2012. Foto: Colectivo Guias
O largo caminho da restituição
Em março de 2007, a Liga Indígena pela Autonomia, Justiça e Ética (Linaje), formada por membros da comunidade Aché Kuētuvyve (hoje desaparecida), realizou um pedido formal de restituição dos restos de seus parentes ao Museu de La Plata. No final daquele ano, Emiliano Mbejyvági viajou como emissário Aché até La Plata para ampliar o pedido: pedia a recuperação dos corpos de Kryýgi e de outros membros de seu povo depositados ali. O pedido também incluía os objetos retirados do lugar do massacre. Ofereceu a troca de elementos Aché de uso diário.
O Honorável Conselho Acadêmico da Universidade Nacional de La Plata constituiu uma grande comissão ad hoc para acompanhar e atender a solicitação. Para isso, cumpriram a Lei N° 25.517 e suas normas que dispõem que os restos mortais dos indígenas que fazem parte de museus ou coleções públicas e privadas podem ser colocados à disposição dos povos pertencentes que os reivindicam. Entretanto, somente em 2009, a Federação Indígena Aché do Paraguai (FENAP) obteve sua personalidade jurídica, legitimou-se diante do Estado paraguaio como representante do povo Aché e pôde continuar com a reivindicação.
A Lei N° 25.517 e suas normas dispõem que os restos mortais dos indígenas que fazem parte de museus ou coleções públicas e privadas podem ser colocados à disposição dos povos pertencentes que os reivindicam.
A Lei N° 25.517 dispõe que os restos mortais de indígenas em museus podem ser colocados à disposição de seus povos de origem.
Em 18 de dezembro de 2009, o Conselho Acadêmico emitiu a Resolução N° 283 que aprovou a restituição de parte de dos restos mortais de Kryýgi e o crânio do trabalhador. Este último havia sido doado ao Museu de La Plata em agosto de 1904 pelo então reitor da Universidade Nacional de Assunção, Federico Codas. Sobre os objetos recolhidos e os demais esqueletos, o órgão superior da universidade não se pronunciou e recomendou esperar a sua análise completa. Por sua vez, as Chancelarias de ambos os países articularam a operação necessária para entrar no Paraguai.
Em 10 de junho de 2010, foi concluída a entrega oficial das urnas no Museu de La Plata. Representando o povo Aché, estiveram Emiliano Mbejyvági (Linaje) e Milcíades Tayjángi (FENAP); Pela parte do Estado argentino, estiveram presentes autoridades da Universidade Nacional de La Plata e a Faculdade de Ciências Naturais; e, finalmente, organizações indígenas argentinas e de Direitos Humanos. Entre os representantes do Museu de La Plata, se destacaram as presenças da especialista Patricia Arenas, sua equipe multidisciplinar e o Grupo Guias, formado por estudantes. Nessa mesma noite, os restos mortais chegaram em Assunção e ficaram mantidos sob proteção da Embaixada argentina. No dia seguinte, realizou-se um primeiro ritual comemorativo no Museu das Memórias para logo depois os transferir para o seu destino final: Ypetĩmi.
O povo Aché acompanha a volta de Kryýgi à floresta. Foto: Colectivo Guias
O povo Aché acompanha a volta de Kryýgi à floresta. Foto: Colectivo Guias
O reencontro na paz da selva
No entardecer da sexta-feira, 11 de junho, chegaram à comunidade as urnas envoltas em rave, o tradicional tapete de folhas de pĩdo (palmeira). Uma multidão formada por delegações de outras comunidades Aché realizaram o ritual de boas-vindas no centro cerimonial. Na entrada, ladeando o caminho, haviam fileiras de lutadores dos ancestrais tõmumbu (o enfrentamento de retificação ética) e jepy (defesa e vingança). Corpos pintados de preto, enfeitados com viju (penas suaves), com javã na cabeça (gorro cônico de pele animal) e com o mortífero japē (lança de combate) em suas mãos davam o quadro solene para as boas-vidas e despedidas que engrossaram o ar de emoção e admiração.
Três mulheres entraram nos restos mortais, enquanto os homens se agitaram e emitiram seus jambu (rugidos). Lá dentro, o chĩnga (lamentações e gritos de reivindicação) e o pre’e (canto) melancólico encheram de angústia um dos momentos mais emblemáticos vividos pelos Aché: a reincorporação de seus membros despossuídos pelo beru (homem branco) e os apã proro (homens brancos armados) há mais de um século. Além disso, o reencontro de nortistas e sulistas diluiu a ancestral diferença entre os gatu, wa (grupo ao qual pertenciam a falecida Kryýgi mái) e os iroiãngi.
Um reduzido grupo de homens e mulheres entrou no matagal do Parque Nacional Caazapá para depositar, nas entranhas da terra, a menina e o jovem que, finalmente, regressaram ao seu ancestral ka’a vachu (selva) de onde foram arrancados.
Um grupo de homens y mulheres entrou no Parque Caazapá para depositar a menina e o jovem que regressaram ao seu ancestral ka’a vachu (selva).
Depois das arengas de dor, das alusões ao genocídio, da desapropriação de territórios e da verificação dos ossos e do crânio, o povo Aché vigiava seus mortos a noite toda. No dia seguinte, um reduzido grupo de homens e mulheres entrou no matagal do Parque Nacional Caazapá, antigo território de caça e coleta, para depositar nas entranhas da terra, em um lugar secreto, a menina e o jovem que, finalmente, regressaram ao seu ancestral ka’a vachu (selva) de onde foram arrancados. Parte da cerimônia foi fotografada pelo cineasta argentino Alejandro Fernández Mouján, que em 2015 estreou o documentário Damiana Kryýgi, que traça sua trilha até seu retorno definitivo.
Em 2011 e graças à um exaustivo trabalho da jornalista alemã Heidemarie Boehmecke, a comunidade acadêmica informou que o crânio da menina havia sido localizado entre a coleção anatômica do Hospital Universitário Charité em Berlim. O Museu de La Plata forneceu toda a documentação e os antecedentes; a Embaixada do Paraguai na Alemanha realizou os procedimentos a pedido do povo Aché. Em abril de 2012, finalmente, Kryýgi estava completa e em paz, aninhada para sempre no meio da floresta, onde um dia, cerca de 120 anos atrás, ela veio ao mundo.