Descolonização do genocídio no Brasil: desafios para a defesa da vida coletiva indígena

Imagem em destaque da nota

O plano de extermínio foi reconfigurado várias vezes para se adaptar aos diferentes contextos culturais e políticos do país. Na história recente, as políticas anti-indígenas de Jair Bolsonaro e a pandemia da Covid-19 colocaram mais uma vez a necessidade de descolonizar o crime de genocídio. Essa categoria jurídica apresenta a impugnação probatória do elemento subjetivo da fraude, ou seja, de que houve a intenção de destruir, total ou parcialmente, os povos indígenas do Brasil.

O plano de extermínio foi reconfigurado várias vezes para se adaptar aos diferentes contextos culturais e políticos do país. Na história recente, as políticas anti-indígenas de Jair Bolsonaro e a pandemia da Covid-19 colocaram mais uma vez a necessidade de descolonizar o crime de genocídio. Essa categoria jurídica apresenta a impugnação probatória do elemento subjetivo da fraude, ou seja, de que houve a intenção de destruir, total ou parcialmente, os povos indígenas do Brasil.

A população indígena cresceu. Os dados preliminares do recenseamento populacional no Brasil (2023), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam um significativo aumento do número de pessoas indígenas. O limiar entre os números do censo de 2010 ̶ cerca de 900.000 pessoas ̶ e o balanço parcial atual com o registro de 1,4 milhões evidencia, pelo menos, duas hipóteses:, a resistência permanente das comunidades localizadas nos diversos territórios ancestrais e o direito à autodeclaração tolhido pela violência e por violações.

Contudo e infelizmente, esse fato por si só não tem o condão de refletir de forma fidedigna a verdade não estampada de um país quase sempre antindigena. A redução criminosa da diversidade estimada em milhões quando da invasão do Brasil nunca deve ser olvidada, porque tão pouco pode ser inteiramente restabelecida, visto que o rastro de sangue indígena derramado foi e é sistematicamente silenciado por arranjos igualmente criminosos que parecem excluir a tipicidade das atrocidades empreendidas.

Não há inocência na afirmação, mas tão somente a reprodução do anseio que lateja entre os indígenas pela necessidade do reconhecimento das condutas dolosas que ceifam suas vidas como típicas, culpáveis e puníveis, sobretudo, aquelas que intentam a “destruição, no todo ou em parte de grupo étnico”. Assim, apesar de instantaneamente parecer desproporcional falar em genocídio dos povos indígenas face ao crescimento populacional mencionado, não há contrassenso, pois enquanto a resistência continua a gestar no seio das comunidades e nas margens das mais diversas cidades, o plano de extermínio é constantemente reconfigurado para ser adaptado aos contextos sociais e políticos.

Imagen

Manifestação indígena em Brasília em 2018 demanda pela proteção dos territórios indígenas. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Imagen

Manifestação indígena em Brasília em 2018 demanda pela proteção dos territórios indígenas. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

O Reformatório Krenak e a naturalização do estigma da inferioridade cultural

Desnudar a história sanguinária brasileira disfarçada de conquista é indispensável para compreender como as políticas estatais, com suas devidas ressalvas, em muito serviram de palco para a instrumentalização das práticas de esbulho desenvolvidas, principalmente, através da supressão dos corpos físicos e das identidades indígenas. As políticas de contato exercidas pelas frentes de atração são exemplos concretos, visto que fomentaram os deslocamentos forçados dos indígenas dos seus territórios tradicionais sobre os quais incidiam interesses particulares de terceiros não indígenas.

O Reformatório Krenak, localizado no Estado de Minas Gerais, instalado no período do AI-5 (Ato Institucional de 1968 que acirrou a ditadura militar de 1964), foi o primeiro a ser oficializado como cárcere especificamente para povos indígenas. Utilizado para reprimir os indígenas que se insubordinavam contra violações, representou um verdadeiro “projeto de homogeneização da diversidade” pela tentativa de suprimir identidades, supostamente dirigido contra indivíduos, mas com capacidade de alvejar coletivamente as comunidades e povos.

O estigma da inferioridade cultural e humana em detrimento dos povos originários é naturalizado e utilizado como meio para justificar a adoção de medidas de transformação e extermínio.

Enraizado nas estruturas do Estado e da sociedade, perpetua-se o poder de decisão sobre o direito à vida do outro, no caso, o indígena.

Foram, e continuam sendo, inúmeros os esforços empreendidos para ocultar, camuflar ou mesmo deturpar as estratégias utilizadas para operar o desprezo pela vida dos povos indígenas no Brasil. Enraizada nas mais profundas esferas e estruturas do Estado e da sociedade, perpetua-se ao longo do tempo a instrumentalização do exercício de poder decisório sobre o direito à vida do outro, nesse caso, o indígena. Mesmo fazendo um recorte somente do passado mais recente e do presente, é possível observar como políticas de Estado são potencialmente utilizadas para violar os direitos dos povos indígenas, principalmente, o direito à vida associada às atuações deliberadas e omissões quanto à proteção de direitos como a terra e o meio ambiente.

Talvez sejam, portanto, resultado intencional as lacunas que observamos no processo de aproximação, sob a perspectiva da aplicabilidade, de crimes como o genocídio. Não há explicação única e definida para compreender tamanha dificuldade, no entanto, são claros os fatos como a construção ocidental da categoria que “parece não conseguir traduzir a vida indígena”, bem como os processos de hierarquização valorativa dessas vidas conforme eixos do padrão de poder, ao considerar a hierarquização racial a partir da codificação das diferenças. Naturaliza-se o estigma de inferioridade cultural e humana investido em desfavor dos povos originários, em decorrência da diversidade que configura as identidades, como meio de tentar justificar a adoção de medidas de transformação e extermínio.

Diante desse cenário, e amparados por uma Constituição com referenciais dignos sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas, os limites ocidentais da definição de genocídio são provocados a partir dos povos indígenas e seus representantes legais como estratégia para descolonizar a categoria e aproximá-la da realidade indígena que urge por ser ouvida e constitucionalmente protegida.

Imagen

Manifestação indígena em São Paulo (2021) para exigir a demarcação de Terras Indígenas. Foto: Telam

Imagen

Manifestação indígena em São Paulo (2021) para exigir a demarcação de Terras Indígenas. Foto: Telam

O crime de genocídio durante a pandemia de Covid-19

Em 2002, o Estatuto de Roma foi ratificado no Brasil, passando a integrar a legislação brasileira. Assim, o país passou a fazer parte da jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI). À época, talvez fosse quase inimaginável que, cerca de 17 anos depois, em novembro de 2019, seria enviada ao Tribunal uma “denúncia contra Bolsonaro por crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas no Brasil”.

A pauta chega ao TPI num dos momentos mais complexos da história indígena no Brasil. O então chefe do poder executivo passava a reafirmar e executar promessas que havia sinalizado ainda na campanha eleitoral, dando ensejo à estruturação de uma verdadeira política anti-indígena. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) foi militarizada e instrumentalizada, os órgãos de proteção ambiental foram enfraquecidos e se tornou frequente a incitação ao ódio e ao esbulho. Em diversas ocasiões, Bolsonaro fez discursos públicos contra os direitos fundamentais, principalmente no que diz respeito à demarcação de terras indígenas.

A APIB questionou a omissão do Governo Federal em combater a pandemia e alertar para o risco de genocídio a que estavam expostos.

A APIB questionou a omissão do Governo Federal em combater a pandemia e alertar para o risco de genocídio a que estavam expostos.

Esse cenário foi potencializado com a pandemia de COVID-19 e, junto com ela, o risco de se repetir um fato recorrente no Brasil, que é o favorecimento da disseminação de doenças entre os indígenas como modus operandi para vulnerabilizá-los e impor os interesses escusos sobre seus territórios, suas vidas e suas riquezas naturais.

Porém, algo novo nesse processo seria gestado. Os povos indígenas, através de seus advogados(as) também indígenas, foram à Suprema Corte brasileira através da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A entidade questionou a omissão do Governo Federal no combate à pandemia e alertar sobre o risco de genocídio a que estavam sendo expostos. Nesse caso, foi reconhecida a legitimidade da APIB como entidade representativa nacional para levar ao mais alto escalão do judiciário brasileiro a existência de formas específicas de potenciais práticas genocidas.

Imagen

“Bolsonaro, seu governo é genocida.” Às críticas sobre a forma de lidar com a Covid-19, soma-se uma denúncia perante o Tribunal Penal Internacional. Foto: Brasilwire

Imagen

“Bolsonaro, seu governo é genocida.” Às críticas sobre a forma de lidar com a Covid-19, soma-se uma denúncia perante o Tribunal Penal Internacional. Foto: Brasilwire

A tipificação do genocídio no Brasil e o elemento subjetivo do dolo

Esses marcos da defesa dos direitos dos povos indígenas influenciam e alertam para o necessário processo de descolonização do crime de genocídio ainda limitado por mitos “civilizatórios”. A despeito da ampla discussão que persegue o processo de tipificação, e assim o deve ser como forma de qualificar e adaptar a categoria às camadas sociais e humanas, outro lapso emergente e urgente de questionamento se refere ao ônus probatório do seu elemento subjetivo.

A tipificação do genocídio no âmbito internacional conta com a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 30.822/1956. O crime consta do Art. 6º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, também ratificado pelo Brasil. Ainda no ordenamento pátrio, a Lei nº 2.889/1956 que definiu o crime de genocídio e sua respectiva pena e, posteriormente, em 1984, a Lei 7.209 incluiu no Código Penal o genocídio cometido por brasileiro ou domiciliado no Brasil.

Há em comum na legislação citada a exigência do elemento subjetivo dolo para configuração do crime, ou seja, é necessário comprovar a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. E apesar do imenso desafio probatório que a categoria representa para aqueles que exercem a defesa de interesses coletivos, a política anti-indígena do ex-chefe do executivo federal revelou claramente a intenção de destruição dos povos indígenas.

Imagen

Protestos de 2017 em Brasília exigindo a demarcação de territórios durante o governo de Michelle Temer. Foto: APIB

Imagen

Protestos de 2017 em Brasília exigindo a demarcação de territórios durante o governo de Michelle Temer. Foto: APIB

Caminho para a descolonização da justiça

Sobre as letras garrafais do direito ocidentalizado ou daqueles que o operam, podemos concluir que iniciamos o ano de 2023 em tempo paz. Mas, os limites de tal configuração não levam em conta o permanente estado de guerra em que vivem diversos povos indígenas no Brasil, especialmente, o povo Yanomami, menos ainda de que contra esses povos se prolongam, ao longo dos últimos anos, ataques sistemáticos que configuram a intenção de exterminá-los.

A tentativa de liberação da mineração, atividades exploratórias e legalização dos garimpos somadas à omissão no dever de proteger as terras que tem favorecido a contaminação dos rios e dos solos em terras do povo Munduruku com mercúrio que compromete a gestação e a amamentação entre as mulheres indígenas, não são medidas que impedem os nascimentos no seio do grupo? A apresentação ao Congresso do projeto de lei para liberação dessas atividades não representa claramente a intenção de destruir no todo ou em parte os povos indígenas?

Talvez, e só talvez, uma das respostas esteja no inevitável processo de descolonização dos órgãos judiciais nacionais e internacionais, os últimos guardiões dos direitos fundamentais. Já se iniciou um movimento de qualificação da incidência específica dos povos indígenas por meio de seus representantes legais, também indígenas.