Passados que não passam Genocídios indígenas, mobilização e luta contra a impunidade no Brasil

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Diante dos recentes crimes contra os povos indígenas do Brasil, é preciso chamar a atenção para a sistemática e estrutura sólida dos interesses e impunidade que os promovem e sustentam. Nesse quadro, é preciso falar do passado, das práticas genocidas e desenvolver políticas de reparação, mas também é preciso garantir o essencial para que os povos indígenas possam florescer. Os discursos de desprezo contra a vida dos indígenas, como os de Jair Bolsonaro, vieram para ficar e diante dessa nova frente de conflito a impunidade deve ser socialmente insuportável.

Diante dos recentes crimes contra os povos indígenas do Brasil, é preciso chamar a atenção para a sistemática e estrutura sólida dos interesses e impunidade que os promovem e sustentam. Nesse quadro, é preciso falar do passado, das práticas genocidas e desenvolver políticas de reparação, mas também é preciso garantir o essencial para que os povos indígenas possam florescer. Os discursos de desprezo contra a vida dos indígenas, como os de Jair Bolsonaro, vieram para ficar e diante dessa nova frente de conflito a impunidade deve ser socialmente insuportável.

Quando Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República em outubro de 2018, a sociedade brasileira e a comunidade internacional já tinham inúmeros indícios sobre a radicalidade de seu desprezo contra as vidas, existências e demandas dos povos indígenas. Embora esses princípios eram o resultado de uma complexa combinação de crenças, preconceitos, ignorância e interesses econômicos, também refletiam um clima em que políticos como Bolsonaro passaram a se sentir legitimados a emitir ideias não apenas discriminatórias, mas declaradamente hostis aos indígenas.

Deveriam ser motivo de profunda preocupação que esses princípios foram a base ideológica de um governo democraticamente eleito. No entanto, quatro anos depois, constatamos que tais ideias vieram para reconquistar o espaço político perdido com a queda dos governos autoritários dos anos 1970 e 1980.

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Em 2021, as ruas de Brasília foram palco da maior mobilização de indígenas da história do país na luta por direitos territoriais. Foto: Isabelle Araujo e Alass Derivas

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Em 2021, as ruas de Brasília foram palco da maior mobilização de indígenas da história do país. Foto: Isabelle Araujo e Alass Derivas

Um genocídio em nome do “desenvolvimento”

Naquele contexto de consternação, em 2019, realizou-se na Universidade de Brasília o seminário internacional sobre Genocídio Indígena, congregando antropólogos, documentaristas, advogados e outros profissionais do direito, indígenas e não indígenas. O resultado desse seminário e do subsequente trabalho de sistematização levaram à organização do livro Genocidios Indígenas en América Latina. A partir de pesquisas desenvolvidas na Argentina, no Brasil e na Colômbia sobre os sérios abusos perpetrados por agentes do Estado, por colonos e empresas desde o próprio surgimento dos Estados nacionais até hoje, o livro mostra que o Brasil não é, nem de longe, uma exceção. Todas as nações americanas se construíram com a destruição e sobre os escombros de múltiplos mundos indígenas.

Poucos meses depois do seminário em Brasília, o modo como o Governo Federal do Brasil tratou a pandemia de Covid-19 no país e, em especial, na Amazônia trouxe de volta a terrível lembrança de como as doenças foram usadas deliberadamente como instrumento para exterminar dezenas de povos indígenas. De fato, foram as famigeradas “frentes de contato” que colonos, garimpeiros e empresários tentaram aniquilar os indígenas quando os consideraram um obstáculo aos seus projetos de “desenvolvimento”, exploração e acumulação econômica. No entanto, essa ação contou com a cumplicidade e participação ativa de funcionários do Serviço de Proteção ao Índio, órgão criado em 1910 que, a partir de 1967, passaria a se chamar Fundação Nacional do Índio (Funai).

O texto detalha práticas como escravidão, tortura, abuso sexual, desapropriação territorial, assassinato e morte em larga escala por envenenamento e disseminação deliberada de doenças.

O texto detalha práticas como escravidão, tortura, abuso sexual, desapropriação territorial, assassinato e morte em larga escala.

Em 1967, o procurador Jader de Figueiredo Correia compilou um relatório de 7.000 páginas revelando crimes contra a população indígena do Brasil nas mãos de poderosos proprietários de terras e do próprio Serviço de Proteção ao Índio. O documento, que permaneceu perdido até ser encontrado em 2013 no Museu do Índio no Brasil, descreve como os povos indígenas foram aniquilados ou dizimados. O texto detalha práticas como escravidão, tortura, abuso sexual, desapropriação territorial, assassinato e morte em larga escala por envenenamento e disseminação deliberada de doenças. Em síntese, o relatório mostra o abandono generalizado da população indígena do Brasil entre os anos de 1940 e 1960.

Apesar do Relatório Figueiredo, com um novo impulso para a expansão econômica e projetos de infraestrutura na região amazônica na década de 1980, empresários e garimpeiros promoveram uma nova onda de violência contra os povos indígenas. Nesse contexto, um grupo de antropólogos, artistas e políticos se mobilizou junto ao povo Yanomami e obteve avanços significativos nos processos de reconhecimento por parte do restante da sociedade brasileira e da comunidade internacional.

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Um xamã umutima em 1957. Em 1969, a maior parte dos umutimas foram dizimados pela pandemia. Foto: José Idoyaga / Survival

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Um xamã umutima em 1957. Em 1969, a maior parte dos umutimas foram dizimados pela pandemia. Foto: José Idoyaga / Survival

A ditadura, os empresários e a Covid-19

Anos depois, em 2014, a Comissão Nacional da Verdade do Brasil entregou um relatório sobre violações de direitos humanos entre 1947 e 1988. Na seção sobre violações de direitos indígenas durante a ditadura, observa-se que a maioria dos crimes são consequência das transformações territoriais promovidas pela interpretação militar da perspectiva colonial que declarou inúmeros territórios indígenas livres para exploração. Na mesma linha, em 2017, o jornalista Rubens Valente publicou o livro Os Fuzis e as Flechas. História de sangue e resistência indígena à ditadura.

No eixo da violência em larga escala contra os povos indígenas do Brasil, outro avanço foi alcançado no âmbito da investigação sobre responsabilidade empresarial em crimes contra a humanidade. Desde 2021, a investigação é promovida pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo em diálogo com diversos espaços acadêmicos, como a Rede de Processos Repressivos, Empresas e Trabalhadores, Trabalhadores e Sindicatos da América Latina. Nessa linha, são estudadas as trajetórias de diversas empresas e grupos econômicos, bem como as grandes obras de infraestrutura realizadas durante a ditadura. As investigações analisam seus efeitos ecológicos, produtivos e territoriais, e seu impacto em diferentes setores da população, entre os quais os povos indígenas são as principais vítimas.

Durante a Covid-19, o governo teria tido uma política de omissão deliberada quanto ao contágio e teria permitido, quando não promovido, a chegada de milhares de pessoas ao território Yanomami.

Durante a Covid-19, o governo teria tido uma política de omissão deliberada em relação às infecções.

Embora o Estado, os colonos e as empresas são atores centrais nesses processos de grande destruição socioterritorial, as práticas de violência contra os povos indígenas também envolvem outros atores. Nessa longa trajetória de denúncias contra o governo de Jair Bolsonaro expostas por organizações indigenistas e ambientalistas, destaca-se a ação movida em 2021 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) junto ao Tribunal Penal Internacional em Haia.

Com a pandemia de Covid-19, o governo teria tido uma clara política de omissão deliberada sobre os contágios e teria permitido, se não instigado, o avanço de milhares de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. O governo era consciente do risco de mortes em grande escala com a multiplicação de contágios e a retirada da assistência à saúde que existia no território. Em outro documento, a APIB declara: “A desassistência à saúde, a fragilização de marcos legais de proteção aos territórios e a total conivência da FUNAI com o garimpo ilegal dentro do território indígena Yanomami foram o fio condutor da política indigenista durante o período de 2019 a 2022”.

Desta vez, ao contrário das práticas genocidas que foram ocultadas pelas agendas informativas no Brasil, a política de Jair Bolsonaro foi exposta aos olhos e ao escrutínio público graças à mídia. Nesta ocasião, a opacidade não veio acompanhada de dificuldades de comunicação ou de documentação dos casos, mas sim de fake news: a ferramenta de comunicação mais utilizada pelo bolsonarismo para deturpar a realidade e oferecer “verdades” falsas à opinião pública.

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Durante a Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro teve uma política de omissão deliberada em relação às infecções no território Yanomami. Foto: FILAC

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Durante a Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro teve uma política de omissão deliberada em relação às infecções no território Yanomami. Foto: FILAC

A necessidade de refletir sobre o genocídio

O debate público sobre os crimes contra a humanidade cometidos nos últimos anos contra os povos indígenas do Brasil estimula-nos a continuar a pôr em evidência não apenas a sistematicidade da violência, mas também a solidez das estruturas de impunidade que a sustentam. Por meio de contribuições advindas de disciplinas como a antropologia e o direito, este número especial de Debates Indígenas focaliza nas comunidades do Brasil por meio de casos e experiências relatados por indígenas e não indígenas que vêm trabalhando nessa temática em várias regiões do país.

A formulação sobre Passados que não passam proposta pela antropóloga argentina Claudia Briones para pensar as irradiações da chamada “Conquista do Deserto”, na Patagônia argentina, alude às manifestações no presente de lembranças, memórias e escombros deixados por ações de violência maciça exercidas contra os povos indígenas. Mas também alude à possibilidade de que o passado se irradie de outras maneiras e encontre outros modos menos conflituosos de se expressar, por meio de uma escuta em boa fé que substitua o habitual entrincheiramento em “preconceitos e ideias recebidas que perpetuam e multiplicam mal-entendidos e violência” em torno daquilo que se qualifica como genocídios indígenas. Por fim, alude à pergunta sobre o futuro, ao convidar a refletirmos sobre quais irradiações do passado e quais formas de justiça são apropriadas para imaginarmos formas plurais de convivência coletiva.

Falar de genocídio e justiça, diz Tuxá, é não só reparar o passado, mas também arbitrar as formas pelas quais é possível garantir o que é essencial para o florescimento de cada povo indígena.

As práticas de genocídio são também os vestígios de seus territórios de vida e de sentido destruídos ou modificados para sempre.

É necessário ampliar o que as sociedades latino-americanas costumam reconhecer como genocídio ou práticas genocidas. As práticas de genocídio são também as histórias trágicas de homens e mulheres que viram todos os seus parentes morrerem um a um ou que não tiveram outra opção senão buscar refúgio entre outros povos. São também os vestígios de seus territórios de vida e sentido destruídos ou modificados para sempre; ou as relações de afeto e parentesco que surgem após a perda como forma de tornar o presente habitável.

Porém, com afirma Felipe Tuxá, enfrentamos a criatividade das tecnologias genocidas próprias dos territórios usurpados pelo colonialismo. Falar de genocídio e de justiça é não apenas reparar o passado, mas também decidir de que modo é possível assegurar o essencial para que cada povo indígena possa florescer. É preciso trabalhar com distintas disciplinas, com a participação ativa dos próprios indígenas, de maneira que o campo da justiça se abra definitivamente para tratar tais crimes contra a humanidade. Do contrário eles seguirão impunes e a porta para que se repitam seguirá aberta. Nesse sentido, destaca-se o reconhecimento da responsabilidade do Estado nos massacres de Haximú e Capacete, bem como o estabelecimento de algumas medidas reparatórias.

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Povos indígenas defendem a criação de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena. Foto: Matheus Araujo

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Povos indígenas defendem a criação de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena. Foto: Matheus Araujo

Justiça, memória, verdade e reparação

Hoje temos a tarefa de expor evidências e argumentos no espaço público para que as práticas genocidas contra os povos indígenas se tornem inaceitáveis ​​e para que a impunidade se torne socialmente insuportável. A memória viva desses crimes deve se tornar uma barreira que garanta que essas práticas e suas repercussões no presente jamais se repitam.

Em 2023 faz dez anos a redescoberta do Relatório Figueiredo, que chamou a atenção para a necessidade de se levar a cabo uma verdadeira transformação na cultura política do país. A criação do Ministério dos Povos Indígenas pode ser um passo nessa direção, como também as declarações de um governo federal disposto a romper com o paradigma da impunidade. Dada a escala, diversidade, sistematicidade, gravidade e persistência dos atos de violência, não parece possível que possam ser resolvidas apenas com a vontade de um governo.

Talvez seja o momento de se pensar numa Comissão Nacional Indígena da Verdade, que permita não apenas medir a escala das práticas genocidas cometidas no Brasil, mas criar um ambiente sustentável de justiça, memória, verdade, reparação e não repetição de tantas violências.