Viver sem se acostumar: contato e morte karara no rio Jatapu

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Esese era criança de colo quando sua família foi capturada em sua aldeia nos anos 1960. Hoje, ela é a última sobrevivente do grupo Karara que foi contatado no rio Carará. Seu destino e o de seus familiares esteve marcado pela exploração de látex, a caça ilegal, a mineração de ferro e estudos de aproveitamento hidrelétrico no rio Jatapu. Ao esbulho territorial, se somaram epidemias de malárias trazidas pelos trabalhadores não-indígenas que dizimaram sua família. Arrancada de seu lugar no rio Carará, Esese viveu em diversas aldeias, terras indígenas e cidades sem, no entanto, se acostumar a viver em nenhum lugar.

Esese era criança de colo quando sua família foi capturada em sua aldeia nos anos 1960. Hoje, ela é a última sobrevivente do grupo Karara que foi contatado no rio Carará. Seu destino e o de seus familiares esteve marcado pela exploração de látex, a caça ilegal, a mineração de ferro e estudos de aproveitamento hidrelétrico no rio Jatapu. Ao esbulho territorial, se somaram epidemias de malárias trazidas pelos trabalhadores não-indígenas que dizimaram sua família. Arrancada de seu lugar no rio Carará, Esese viveu em diversas aldeias, terras indígenas e cidades sem, no entanto, se acostumar a viver em nenhum lugar.

Desde 1930, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), atualmente a Fundação Nacional do Índio (Funai), dispunha de informações sobre contatos entre indígenas em isolamento voluntário e trabalhadores que extraíam o látex da sorva e da balata, árvores utilizadas para a produção de borracha, no médio curso do Jatapu, afluente do rio Uatumã, no leste do estado do Amazonas. Em 1942, o SPI decidiu instalar dois Postos de Atração Indígena (PIA): um em Jatapu, próximo à aldeia Xowyana, e outro na antiga aldeia Kahxe, na aldeia Okoymoyana.

Conforme foram sendo feitos contatos e descimentos dos igarapés para a beira do Jatapu, parcelas desses povos optaram pelo isolamento nas áreas de serras. A presença do SPI, longe de impedir as invasões no Jatapu, potencializou as incursões ao fornecer abrigo, aviamento aos não indígenas e parceria na procura de peles de felinos, minérios e, principalmente, látex de balata e sorva.

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Esese e seu marido, Karatawa, na cidade de Kahxe (2022). Foto: Associação Aymara

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Esese e seu marido, Karatawa, na cidade de Kahxe (2022). Foto: Associação Aymara

Crônica de uma captura

A região onde viviam os Karara, o povo de Esese, era mais acima do que o local onde o Serviço de Proteção aos Índios havia instalado seus postos e era bastante rica em látex. Por volta de 1962, balateiros (coletores de látex) capturaram uma mulher indígena no Rio Cidade Velha e a levaram para o Posto de Atração Indígena. Com essa mulher e os homens que a capturaram, o SPI realizou uma expedição ao local com o objetivo de buscar mais indígenas Karara.

Esese relata que os karaiwa (não indígenas) iam extrair látex de sorva e matar onças no rio Carará. Por isso, seus parentes, ao ouvirem o barulho do motor e a chegada dos homens, fugiam. No entanto, dessa vez os Karaiwa haviam armado redes de pesca ao longo dos caminhos que os índios Karara utilizavam na mata. Os mais jovens conseguiram evitar as armadilhas e correram para se esconder, mas uma mulher com seu bebê ficou presa e ela, junto com os demais que ficaram para ajuda-la, foram pegos. Esese explica que eles foram capturados e levados para o Posto Indígena localizado na aldeia Kahxe: “Eles conseguiram pegar apenas cinco de nós. Logo dois morreram de malária e apenas três sobraram. Não gostávamos daquele lugar, não nos acostumamos. Tentamos voltar para o Rio Carará e encontrar nosso pessoal, mas não tinha mais ninguém”.

A aldeia deles estava vazia e as outras cinco malocas também haviam sido abandonadas. Os jovens que fugiram da captura desapareceram na floresta junto com a população das outras aldeias.

A aldeia deles estava vazia e as outras cinco malocas também. Os jovens que fugiram da captura desapareceram na floresta.

Esese lembra que funcionários do SPI participaram da captura. Junto com sua mãe, seu avô e seu irmão, eles foram levados para o Posto Indígena localizado em Kahxe: “Eu não falava hixkaryana, nem falava português; Não bebia café nem nada. Eu comia minha própria comida, beiju feito de mandioca. Eu não como comida salgada”. Um ano depois de serem levados para Kahxe, os Karara decidiram voltar ao rio Carará para tentar encontrar seus parentes que haviam fugido: Akoko, Kamara Kana, Maxi Torowari e Karamari.

A aldeia deles estava vazia e as outras cinco malocas (as típicas casas comunais dos índios amazônicos) também haviam sido abandonadas. Os jovens que fugiram da captura desapareceram na floresta junto com a população das outras aldeias. Assim, Esese e sua família se viram sozinhos, convivendo com povos com os quais nunca haviam se relacionado. Ainda assim, tentaram viver novamente próximo à sua antiga aldeia, mas a malária matou sua mãe no rio Carará. Os balateiros continuaram explorando o rio Carará, a malária continuou ceifando vidas indígenas e tornou-se impossível continuar morando na cidade velha. De volta a Kahxe, seu avô e irmão também foram mortos pela malária. Assim, o pai de Esese decidiu ficar morando em Kahxe, onde por vezes conseguiam algum atendimento médio. Ainda voltaram diversas vezes ao Rio Carará, mas nunca viram sinal dos parentes.

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Localização da Terra Indígena Ararà, povos indígenas e principais rios

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Localização da Terra Indígena Ararà, povos indígenas e principais rios

A exploração do ferro e projetos hidrelétricos

Esese, seu pai, seu irmão e sua filha Xenyexenye, que teve com um trabalhador, viveram na área do Posto Indígena Kahxe da década de 1960 ao início dos anos 1980. Em 1962, a Companhia Siderúrgica da Amazônia (Siderama) obteve licença para explorar minério de ferro no rio Jatapu. A empresa instalou acomodações para os trabalhadores, pista de pouso e escritórios às margens do rio Macauari, muito próximo à aldeia Kahxe. Assim como em outras áreas da Amazônia, o interesse do governo militar em promover a mineração associada à geração hidrelétrica traduziu-se em financiamento público para a Siderama e pesquisas financiadas por órgãos federais.

Em 1972, a Eletrobrás realizou estudos na bacia do rio Uatumã e propôs a construção de três usinas hidrelétricas: Balbina, Katuema e Onça. O governo também patrocinou o Departamento Nacional de Produção Mineral (atual Agência Nacional de Mineração) para realizar, entre 1976 e 1978, um estudo sobre sulfetos para identificar depósitos de cassiterita e ouro na bacia do rio Uatumã, o que incluía o próprio Jatapu.

Em 1975, diante da insolvência financeira da Siderama, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) assumiu o controle acionário da empresa e iniciou sua reestruturação (que incluía a base Macauari), retomando a extração mineral. Em conivência com a empresa, nesta mesma época a Funai abandonou o Posto Indígena e pressionou os povos do Jatapu, que já havia passado várias temporadas morando com seus familiares no rio Nhamundá, para que não voltassem para suas aldeias e permanecessem no Posto Indígena Kassawá, que havia sido aberto naquele rio no início dos anos 1970.

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Atualmente, Esese faz artesanato para se sustentar.

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Atualmente, Esese faz artesanato para se sustentar.

O abandono do Jatapu pela Funai

Em 1972, o então Subdiretor do Departamento Geral de Estudos e Investigações da Funai, Ney Land, havia enviado ofício ao Delegado da 1ª Delegacia Regional do órgão em Manaus, solicitando informações “sobre os problemas do Posto Indígena Jatapu, com relação às mineradoras que lá se estabeleceram”. A situação de Jatapu só seria investigada em 1976, por meio de um estudo de campo da agrônoma Gertrud Rita Kloss, contratada pelo convênio entre a Funai e o Projeto Radar da Amazônia (Radam).

O projeto Radam foi criado em outubro de 1970 com recursos do Programa de Integração Nacional (PIN), durante o governo militar de Emílio Garrastazu Médici. Seu objetivo era mapear recursos nas áreas de execução de projetos de colonização, energia e mineração. Quando Kloss chegou para fazer suas pesquisas, ficou atônita com a situação, pois a região estava sendo invadida por um grupo de 100 gateiros (caçadores de felinos para a venda de pele). Entre os gateiros estava João Oliveira, último funcionário do Serviço de Proteção ao Índio em Jatapu.

Essa situação de invasões não era novidade no rio Jatapu, já que a Siderama atuava na região há mais de uma década sem nenhuma restrição. Kloss relaciona a epidemia de malária com a chegada da empresa: “Quando a Siderama começou a se instalar na região, por volta de 1960, viviam no PI de 30 a 40 índios. As doenças começaram a mata-los. Por esse motivo, um ano depois da chegada dos civilizados, mudaram-se para o rio Nhamundá, ficando, apenas, a família referida acima. Todos eram originários do alto Jatapu onde não há mais malocas”.

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Kamara Kahxe (Jaguar Rapids), onde foi projetada uma das hidrelétricas de Jatapu.

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Kamara Kahxe (Jaguar Rapids), onde foi projetada uma das hidrelétricas de Jatapu.

Viver sem se acostumar

A família que Kloss diz ter permanecido era precisamente a de Esese. Apesar da família de Esese ter sido encontrada morando no Posto Indígena Jatapu em 1976, a Funai o extinguiu formalmente em 1977. Quando souberam que os Karara ainda estavam em Kahxe, temendo por suas vidas, os indígenas Okoymoyana e Xowyana que haviam sido transferidos pela Funai para o rio Nhamundá decidiram ir ao Jatapu em 1982 para procurar Esese, sua filha e seu pai.

No rio Nhamundá, o pai de Esese casou-se novamente com uma Hixkaryana e teve um filho. Em contraste, Esese não se estabeleceu em nenhum lugar desde que deixou Kahxe. Acabou indo morar na aldeia Jutaí, em Nhamundá. De lá foi para a cidade de Nhamundá e depois para a cidade de Urucará. Ela tentou voltar para o rio Jatapu no fim da década de 1990, mas a filha não estava mais acostumada com a cidade e decidiram voltar para Urucará. Quando, a partir de 2003, os Okoymoyana e Xowyana decidiram abrir aldeias permanentes em Jatapu, Esese voltou com a filha para Kahxe.

Ela lamenta jamais ter encontrado aqueles que ficaram no Rio Carará, mas tem certeza de que estão lá e espera que os deixem em paz para que não sofram como sua família.

Ela lamenta jamais ter encontrado aqueles que ficaram no Rio Carará, mas tem certeza de que estão lá e espera que os deixem em paz.

Desenraizada do Rio Carará, a família de Esese foi separada de seus parentes e de seus lugares. Eles passaram a vida sem se acostumar a viver em cidades e aldeias de outros povos, sem nunca deixar de ser estranhos para os outros. Esese agora é casada com um viúvo Okoymoyana e mora entre a cidade de Kahxe e a cidade de Urucará, onde vivem sua filha e netos. Fica assim num “entre”, sem ter realmente um lugar. Hoje ela diz que não quer mais se mudar e quer ficar em Kahxe, onde passou a infância, onde nasceu a filha e onde estão enterrados o avô e o irmão.

Ela lamenta jamais ter encontrado aqueles que ficaram no Rio Carará, mas tem certeza de que estão lá e espera que os deixem em paz para que não sofram como sua família. Ao falar deles, Esese faz também questão de citar todos os filhos de seu meio-irmão que mora no rio Nhamundá. “Os Karara estão lá!”, ela afirma sempre, como quem enfatiza que, enfim, eles puderam encontrar novamente um lugar seu para viver.