Nas últimas décadas, os povos da Amazônia brasileira perderam a tranquilidade que a floresta lhes oferecia. A mineração ilegal do ouro é o principal fator que afeta sua vida social, sua cultura e bem-estar. Os garimpeiros saqueiam seus recursos naturais, contaminam seus rios com mercúrio e transmitem doenças como malária e tuberculose. Com a homologação da Terra Indígena Yanomami em 1992, o território viveu um interlúdio de tranquilidade até a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. O novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu que o garimpo ilegal não existirira mais, mas o passado continua a se repetir no presente.
Nas últimas décadas, os povos da Amazônia brasileira perderam a tranquilidade que a floresta lhes oferecia. A mineração ilegal do ouro é o principal fator que afeta sua vida social, sua cultura e bem-estar. Os garimpeiros saqueiam seus recursos naturais, contaminam seus rios com mercúrio e transmitem doenças como malária e tuberculose. Com a homologação da Terra Indígena Yanomami em 1992, o território viveu um interlúdio de tranquilidade até a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. O novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu que o garimpo ilegal não existirira mais, mas o passado continua a se repetir no presente.
A grande família linguística yanomami ocupa ambos os lados da fronteira entre o Brasil e a Venezuela no norte da floresta amazônica. Estima-se que sejam cerca de 37 mil pessoas, quase 27 mil das quais no lado brasileiro (dados de 2023). Na Venezuela, vivem na reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare e, no Brasil, na Terra Indígena Yanomami (TIY), onde também vive uma parcela do povo ye’kwana. A TIY foi demarcada e homologada em maio de 1992, com cerca de 9,5 milhões de hectares.
A pesquisa recente de Helder Ferreira, Ana Maria Machado e Estêvão Senra identifica seis línguas distintas e 16 dialetos. O grau de inteligibilidade mútua dessas línguas varia muito, o que reflete o longo processo de separação em subgrupos devido às múltiplas migrações durante os últimos séculos. O século XX desnudou os Yanomami ao mundo. Missionários começaram a chegar na década de 1950 e se instalaram em diversos pontos do território, ao contrário de viajantes e naturalistas de séculos anteriores que deixaram poucas e incertas menções a povos hoje identificáveis como Yanomami. A partir dos anos 1970, começa o assédio ao território yanomami no Brasil. Façamos uma pequena cronologia.
Exposição “Faces da Floresta – Os Yanomami”. Foto: Valdir Cruz
Exposição “Faces da Floresta – Os Yanomami”. Foto: Valdir Cruz
A rodovia e a febre do ouro
A primeira invasão de monta veio durante a ditadura militar, entre 1973 e 1975, com a construção da rodovia Perimetral Norte nos estados de Roraima e Amazonas, que pretendia cortar a Amazônia no sentido Leste-Oeste. A obra durou menos de três anos e parou abruptamente depois de abertos 200 quilômetros dentro da terra indígena. No entanto, bastou esse tempo para despedaçar a vida de comunidades inteiras atingidas por ela. Sarampo, gripe e outras pestilências devastaram famílias, destruíram a base de subsistência e mataram mais de 22 por cento de seus habitantes, quase inviabilizando o seu tecido social.
O levantamento do Projeto Radambrasil, em 1975, mostrou que o subsolo da terra yanomami é rico em minérios e pobre em fertilidade de solos. Essa notícia não despertou muito interesse da agroindústria, mas deflagrou uma série de invasões de garimpeiros, primeiro, em busca de cassiterita, mineral do qual se extrai estanho e bronze. Logo depois, a Serra de Surucucus, coração do território, assistiu a sérios conflitos armados entre indígenas e garimpeiros provocados por roubos de roças e abusos sexuais contra mulheres indígenas.
Nunca soubemos o número de indígenas mortos pelo avanço da mineração porque, a partir de 1987, pesquisadores, profissionais de saúde, missionários católicos, jornalistas e ativistas foram proibidos de entrar no território Yanomami.
Epidemias alastraram-se rapidamente. Tuberculose, malária e outras tantas pestilências alienígenas mutilaram e mataram.
Em 1980, começa outra invasão, agora por ouro, no alto rio Uraricoera. Eram cerca de 2.000 garimpeiros que, nove anos depois, chegaram a 50 000, espalhados por toda a região central das terras yanomami no Brasil, atravessando a fronteira e causando problemas diplomáticos com a Venezuela. A situação alcançou o ponto crítico em agosto de 1987. Mercúrio e assoreamento poluíram o rio Mucajaí em toda a sua extensão, o mesmo ocorrendo nos rios Uraricoera, Catrimani e Couto de Magalhães. A ininterrupta decolagem e aterrissagem de aviões e helicópteros em mais de 80 pistas clandestinas afugentou a caça, levando os Yanomami à penúria e à humilhação de depender da comida dos garimpeiros.
Epidemias alastraram-se rapidamente. Tuberculose, malária e outras tantas pestilências alienígenas mutilaram e mataram, umas de maneira fulminante, outras aos poucos, corroendo o equilíbrio demográfico de comunidades inteiras, deixando órfãos ao Deus dará, ameaçando seriamente sua produção de bens materiais e culturais e a própria reprodução social. A cada nova pista de pouso aberta, a cada novo barranco que se dilapidava, a cada novo acampamento garimpeiro que se instalava, crescia a destruição da vida yanomami.
Nunca chegamos a saber o número de indígenas mortos pelo avanço do garimpo porque, a partir agosto de 1987, a Fundação Nacional do Índio (Funai), os militares do Conselho de Segurança Nacional e o então governador de Roraima, Romero Jucá, proibiram pesquisadores, profissionais de saúde, missionários católicos, jornalistas e outros observadores de entrar em território yanomami. A clandestinidade protegia-se de denúncias.
Garimpo na região do Rio Mucajaí. Os mineradores “lavam” o ouro extraído ilegalmente para ser vendido no mercado. Foto: Daniel Marenco
Garimpo na região do Rio Mucajaí. Os mineradores “lavam” o ouro extraído ilegalmente para ser vendido no mercado. Foto: Daniel Marenco
A crise sanitária dos Sanumá do rio Auaris
No vale do rio Auaris, no divisor de águas entre o Brasil e a Venezuela, no fim dos anos 1960, fiz minha primeira pesquisa com o grupo Sanumá, num tranquilo rincão da mata amazônica que, naquele momento, era um verdadeiro paraíso etnográfico sem pressões, sem invasões, sem epidemias. Mas a transformação daquele paraíso em inferno foi apenas uma questão de tempo.
Sem garimpos por perto, o alto rio Auaris em Roraima parecia longe da infestação de malária. No entanto, em 1991, tornou-se palco de uma das mais violentas crises de saúde registradas no território yanomami. A comunidade de Kadimani foi duramente atingida por contínuas epidemias de malária que paralisaram a vida social durante meses. Com a maioria dos habitantes imobilizados pela doença, a subsistência ficou seriamente comprometida, surgindo quadros de desnutrição extrema. Casos de anemia profunda exigiam imediata transfusão de sangue. Foram feitas nove transfusões com doadores que viviam em torno da Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) para onde se trasladaram os habitantes de Kadimani.
Embora as equipes médicas tenham evitado muitas mortes, a invasão garimpeira continuou, a malária seguiu ceifando vidas até que, em 1992, a Terra Indígena Yanomami (TIY), demarcada um ano antes, foi homologada e a maioria dos invasores retirados. Houve um interlúdio de relativa tranquilidade (embora com altos e baixos), até Jair Bolsonaro chegar ao poder em 2018. Entre 2019 e 2020, os casos de malária na região do rio Auaris atingiam 247 por cento.
Mapa da Terra Indígena Yanomami.
Mapa da Terra Indígena Yanomami.
Uma nova febre do ouro e a pandemia de Covid-19
Em 2020, os ataques ao povo Yanomami vieram acompanhados da pandemia de Covid-19. A fúria com que a nova corrida do ouro atacou a terra e a vida dos Yanomami desnudou uma orquestrada campanha genocida que visava exaurir os recursos naturais de sua terra, eliminando de vez as etnias que a ocupam. Invasões garimpeiras não são novidade para muitos Yanomami e seus vizinhos Ye’kwana. O inusitado foram as investidas do governo federal contra eles. Bolsonaro, como deputado federal nos anos 1990, já havia tentado, sem sucesso, anular a demarcação da TIY.
Como Presidente da República, optou por táticas à margem da lei para obter o resultado que não logrou como parlamentar. Utilizou à larga medidas flagrantemente inconstitucionais, desafiando o estado de direito, insuflando a propagação de notícias falsas e incentivando sem rodeios o saque e a extrema violência, sempre à revelia de decisões contrárias da Suprema Corte. Essa é a marca de Bolsonaro na sua inglória passagem pela história do país.
A violência de uma nova corrida do ouro revelou uma campanha genocida que buscava esgotar os recursos naturais de sua Terra Indígena e eliminar de vez as etnias que ocupam o território.
A violência de uma nova corrida do ouro revelou uma campanha genocida que buscava esgotar os recursos naturais de sua Terra Indígena.
Passados 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, os Sanumá, sobreviventes do caos de 1991-92, continuam no centro de notícias aterradoras. No dia 24 de junho de 2020, a jornalista Eliane Brum do El País Brasil descreveu o horror de três jovens mulheres que, doentes, foram levadas com seus bebês a Boa Vista, capital de Roraima. No hospital, os bebês morreram e foram enterrados clandestinamente com a suspeita de terem contraído Covid-19. As mães, infectadas pelo vírus, sem saber do paradeiro dos corpos, exigiam que lhes fossem entregues.
Na cultura Yanomami, a presença do corpo é condição necessária para um funeral digno com a cremação do cadáver e os ritos apropriados. “Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”, desabafou uma das mães. Com o escândalo que o caso provocou, os bebês foram exumados e testados. Não era Covid-19! O sepultamento clandestino das crianças sanumá foi uma sórdida agressão, disfarçada de ignorância, contra essas mulheres e, por extensão, contra todos os Yanomami. Como explicou Bruce Albert a Eliane Brum, “não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”.
Protesto indígena em Brasília contra o garimpo ilegal durante o governo de Jair Bolsonaro. Foto: Portal da Terra
Protesto indígena em Brasília contra o garimpo ilegal durante o governo de Jair Bolsonaro. Foto: Portal da Terra
O avanço dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami
O relatório Yanomami sob ataque expõe a magnitude dos crimes que em quatro anos foram ̶ e continuam sendo ̶ cometidos contra o meio ambiente e os habitantes da TIY. Uma estimativa, conservadora, calcula um aumento do garimpo em inimagináveis 3.350 por cento de 1016 a 2020. consequência, aponta o relatório, do desmonte dos órgãos de fiscalização e proteção aos povos indígenas, medida tomada logo no início do governo Bolsonaro. Enquanto a linha de frente garimpeira agia livre e ilegalmente, o governo Bolsonaro limpava o terreno político para que o avanço do garimpo prosseguisse normalmente, neutralizando a fiscalização e abrindo caminho para consumar investidas ousadas sobre terras indígenas.
Sem a astúcia das manobras presidenciais ilícitas, as fileiras garimpeiras não mediram esforços para despejar os Yanomami de suas legítimas terras. Os tempos mudaram, os agressores já não se escondiam. Na região do Palimiu, os Yanomami perceberam sinais dessa mudança: mais agressão verbal, mais atentados a bala, mais armas de grosso calibre, mais ousadia nos ataques. Surgiram fortes indícios da participação de membros da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Por exemplo, no caso das mulheres que procuravam um parente desaparecido no rio e foram agredidas com quatro tiros. No meio do tiroteio, duas crianças morreram afogadas.
Numa repetição invariável da história, como se não bastasse a Covid-19, a malária volta com força redobrada. Calcula-se que a média de contaminação por malária naquele período era de quase dois casos por pessoa. O mesmo fenômeno se repetia em praticamente toda a Terra Indígena Yanomami. A espiral de tragédias continuou a subir.
A visita de Lula da Silva ao povo Yanomami gerou uma esperança que ainda não se concretizou, visto que os garimpeiros continuam extraindo ouro. Foto: Sinpro
A visita de Lula da Silva ao povo Yanomami gerou uma esperança que ainda não se concretizou, visto que os garimpeiros continuam extraindo ouro. Foto: Sinpro
O passado se faz presente
Em janeiro de 2023, 20 dias depois de tomar posse pela terceira vez como Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado de três novos ministros, viajou a Boa Vista para ver de mais perto a tragédia Yanomami. Aparentemente estarrecido, prometeu: “Não vai mais existir garimpo ilegal”. Sua visita disparou um paroxismo mediático inédito. Boa Vista transformou-se na Meca do jornalismo nacional e internacional. Legiões de funcionários de vários ministérios, de forças policiais a agentes de saúde, marcharam atarantados e às pressas para expulsar garimpeiros e estancar a mortalidade dos Yanomami.
Menos de quatro meses depois, o anticlímax. Assim explica o jornalista Felipe Medeiros: “Nos primeiros 100 dias do terceiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), garimpeiros ilegais continuam extraindo ouro, cassiterita e outros minérios na TI Yanomami. Ignoram que no maior território indígena do País esteja ocorrendo uma operação emergencial de socorro humanitário. Para fugir da fiscalização do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis] e da Polícia Federal, eles agora mineram de noite, quando é mais difícil encontrá-los. Apesar dos esforços, 61 pessoas, entre crianças, jovens e adultos Yanomami morreram este ano por diversas doenças, inclusive evitáveis, como desnutrição e malária”.
No último meio século, os Yanomami têm vivido uma alternância aparentemente infinita entre crises letais prolongadas e curtos períodos de paz. É mais um passado que não passa.