Na cidade de Rurrenabaque, os juízes agroambientais e as autoridades indígenas, originárias e campesinas se reuniram durantes dois dias para melhorar a coordenação e discutir os mecanismos de resolução de conflitos. O eixo do debate estava posicionado nas ameaças que vivem os territórios amazônicos: o desmatamento das florestas, a contaminação dos rios com mercúrio e a disputa da terra entre campesinos e indígenas. Por mais de 15 anos da aprovação da Constituição Política do Estado, as jurisdições indigenista e agroambiental enfrentam obstáculos, mas seguem na vanguarda da cena internacional.
Na cidade de Rurrenabaque, os juízes agroambientais e as autoridades indígenas, originárias e campesinas se reuniram durantes dois dias para melhorar a coordenação e discutir os mecanismos de resolução de conflitos. O eixo do debate estava posicionado nas ameaças que vivem os territórios amazônicos: o desmatamento das florestas, a contaminação dos rios com mercúrio e a disputa da terra entre campesinos e indígenas. Por mais de 15 anos da aprovação da Constituição Política do Estado, as jurisdições indigenista e agroambiental enfrentam obstáculos, mas seguem na vanguarda da cena internacional.
No Estado Plurinacional da Bolívia, Rurrenbaque é conhecida como como “a perola turística do Beni”. Com apenas 19.662 habitantes, banhada pelo rio Beni e rodeada por morros, esta cidade é muito apreciada pelos visitantes europeus com moeda estrangeira que vêm conhecer a Amazônia boliviana: “Esta topografia é única: temos morros, planícies, fauna e flora. Deus nos deu esse privilégio e por isso promovemos o turismo e nossa cultiva”, afirma com veemência o prefeito de Rurrenabaque, Elías Moreno.
A cidade se fez internacionalmente famosa durantes a década de 1980, quando o aventureiro israelense Yosseph Ghinsberg entrou na selva vindo de Rurrenabaque, junto a três amigos, em busca de uma pedreira de ouro e de uma aldeia indígena tacana sem contato com a sociedade ocidental. A expedição terminou em tragédia: dois integrantes desapareceram (seus corpos nunca foram encontrados) e a jangada que levava os demais acabou destruída em uma cachoeira. Enquanto o quarto explorador foi resgatado por pescadores, Yossi passou três semanas perdido, sobrevivendo na solidão dos perigos da selva.
Finalmente, Yosseph foi resgatado por uma expedição de moradores e narrou a experiência em um livros de título Jungle: a harrowing true story of survival. A história se tornou rapidamente em um bestseller e fez com que milhares de jovens israelenses, recém saídos do serviço militar obrigatórios, começassem a viajar a Bolívia para conhecer o povoado localizado na Amazônia. A história mudou em 2014, quando o então presidente Evo Morales emitiu um decreto para começar a exigir visto dos turistas de Israel, um aliado dos Estados Unidos. O impacto no turismo foi instantâneo.
Sem a mesmo quantidade de turistas que anos atrás, a oferta de hotelaria de Rurrenabaque é um imã para eventos nacionais ou internacionais que reúnam uma grande quantidade de público. Especialmente, se a temática inclui Amazônia.
A cidade de Rurrenabaque das alturas, uma das principais atrações turísticas da Bolívia. Foto: Damián Andrada
A cidade de Rurrenabaque das alturas, uma das principais atrações turísticas da Bolívia. Foto: Damián Andrada
Um diálogo entre as justiças indígena e agroambiental
Hoje é 28 de abril e Rurrenabaque recebe as autoridades que participam do Evento Amazônico de Deslinde Competente em Recursos Naturais Renováveis. Cerca de 100 lideranças indígenas, originarias e campesinas chegaram de diferentes povos amazônicos para poder dialogar com os juízes e juízas agroambientais. O objetivo é conhecer a normativa e delimitar as competências que cada jurisdição tem, ao mesmo tempo melhorar a coordenação e cooperação Interjurisdicional, tal como prevê a Constituição Política do Estado. O encontro é especialmente relevante no contexto de intensificação do modelo extrativista dos territórios indígenas bolivianos.
A juíza do Tribunal Agroambiental, Elva Terceros, explica que com a nova Constituição sancionada em 2009, a Justiça Comum, formada por quase 1000 juízes, perdeu competências a favor de novas jurisdições. Por um lado, foi criada a Justiça Agroambiental que, com 63 juízes e juízas em todo canto do país, determina sentenças sobre as florestas da Amazônia, as aguas de seus rios e sua biodiversidade. Por outro lado, o Estado Plurinacional acrescentou uma justiça que não nova. “A jurisdição Indígena Comum Campesina sempre existiu. Só que começou a ser reconhecida. Existem mais de 24.000 comunidade e, portanto, mais de 24.000 autoridades. Isto significa que está presente em cada parte do país”, comenta Terceros durante os discursos de abertura.
“Se com a jurisdição Agroambiental conquistamos a coordenação, essa palavra mágica, podemos conquistar muitas coisas juntos. É importante que os juízes e as juízas possam trabalhar em conjunto com as organizações indígenas”
“É importantes que os juízes e as juízas possam trabalhar em conjunto com as organizações indígenas”
Por sua vez, as autoridades indígenas reconhecem a potencialidade da complementação entre ambas jurisdições. Assim manifesta o Presidente da Central Indígenas da Região Amazônica da Bolívia (CIRABO), Eloy Cartagena Yoamona: “Se com a jurisdição Agroambiental conquistamos a coordenação, essa palavra mágica, podemos conquistar muitas coisas juntos. Certamente, vamos solucionar os problemas agrários que temos. É importante que os juízes e as juízas possam trabalhar em conjunto com as organizações indígenas”. O dirigente acrescenta que o departamento de Pando esta tentando mudar seu plano de uso de solos para beneficiar a expansão da fronteira agropecuária. A proposta busca copiar o modelo de agronegócio de Santa Cruz, algo que o departamento de Beni já havia feito em 2019. Milhões de hectares de florestas convertidas em campo para soja ou pasto para gado.
O caso de Pando nos serve para ilustrar o dilema que o modelo boliviano enfrenta. Com as reservas de gás reduzindo, o Governo de Luís Arce Catacora parece se inclinar para o extrativismo nas florestas, selvas e rios amazônicos para conseguir os dólares que não entrarão pelos gasodutos que conectam o pais à Argentina e Brasil. Neste ponto, começam algumas discussões que estarão presentes durante o evento: Os solos amazônicos estão preparados para a produção agrícola e pecuária? A terra deve se doada às comunidades indígenas para garantir sua existência ou deve ser concedida aos campesinos para o exercicio de alguma atividade produtiva? Que jurisdição tem competência para atender os conflitos que afetam à natureza nos territórios indígenas?
A juíza Elva Terceros durante os discursos de abertura do Evento Amazônico de Deslinde Competente em Recursos Naturais Renováveis. Foto: Damián Andrada
A juíza Elva Terceros durante os discursos de abertura do Evento Amazônico de Deslinde Competente em Recursos Naturais Renováveis. Foto: Damián Andrada
O objetivo de democratizar a justiça
Quando a República da Bolívia se converteu em um Estado Plurinacional em 2009, entres as múltiplas transformações engendradas esteve a de democratizar o acesso à justiça que, como em outros países latino-americanos, possui uma forte nuance colonial, racista e antropocêntrica. E que, de fato, atuava como o última barragem para contenção doa impunidade das elites econômicas. Embora a mudança tenha sido notória, ao ponto de que os juízes sejam eleitos pelo voto popular, especialistas coincidem em que a Justiça ainda carece de independência. Enquanto as novas jurisdições criadas, as transformações são mais lentas do que o desejado.
A Jurisdição Agroambiental te, atribuições sobre a resolução de conflitos vinculados a questões agrárias, florestais, ambientais, das aguas, direitos de uso e aproveitamento dos recursos naturais renováveis, hídricos, e da biodiversidade. Da mesma forma, deve resolver demandas sobre atos que atentem contra a fauna, flora, agua e meio ambiente; ou sobre práticas que ponham em perigo o sistema ecológico e a conservação de espécies ou animais. Seu órgão máximo é o Tribunal Agroambiental, com sede na capital Sucre, e a obrigação de organizar e instituir tribunais em diferentes municípios do país.
As autoridades da Jurisdição Indígena Originaria Campesina coincidem em que suas normas e procedimentos próprios devem avançar ao respeito aos direitos humanos e evitar as sanções físicas.
As autoridades da JIOC coincidem em que suas normas e procedimentos próprios devem avançar ao respeito aos direitos humanos
Por sua vez, a Jurisdição Indígena Originaria Campesina (JIOC) é exercida através da aplicação de seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos próprios. Dado que cada comunidade tem suas autoridades, é a Jurisdição maus democrática do país. Embora seja notória a inovação jurídica que isso significa, uma das discussões entre os especialistas é enraizada no âmbito da vigência material onde se a JIOC é exercida. Enquanto na Constituição seu raio de ação é amplo, a lei que a regulamenta limitou suas competências dentro dos territórios indígena e campesinos.
Outro ponto de conflito é que perante a opinião pública, a Justiça Indígena Originaria Campesina aparece na arena midiática quando uma sanção não respeita ao direitos humanos: o linchamento comunitário atar um infrator em uma arvores de palo santo para ser picado pelas formigas. Neste sentido, as autoridade da JIOC coincidem em que suas normas e procedimentos próprios devem avançar ao respeito aos direitos humanos.
As Autoridades da Justiça Indígena Originaria Campesina reconhecem os avances, mas seguem reivindicando igualdade de hierarquias. Foto: Damián Andrada
As Autoridades da Justiça Indígena Originaria Campesina reconhecem os avances, mas seguem reivindicando igualdade de hierarquias. Foto: Damián Andrada
Extração de madeira e mineração de ouro na Amazônia boliviana
Embora a Bolívia seja conhecida internacionalmente pela beleza cultural de seu Altiplano, em realidade quase dois terços de seu território corresponde das Terras Baixas. Esta região abriga mais de 30 povos indígenas que convivem em ecossistemas tão diversos como o monte chaqueño (partilhado com Argentina e Paraguai), os vales férteis dedicados a produção de fritas e verduras, o bosque seco chiquitano e a Amazônia. Esta incomparável biodiversidade cobre entre 45 e 60 milhões de hectares de florestas fundamentais para o equilíbrio climático da terra. O problema é que também abriga uma série de recursos naturais cobiçados pelo modelo de desenvolvimento ocidental.
Luis Acosta Arce é especialista em sistema de produção e agricultura tropical sustentável e assessor do Tribunal Agroambiental: “Bolívia é um dos 10 países mais megadiversos do mundo. Neste momento, as principais ameaças aos recursos naturais renováveis são os incêndios florestais, a pressão sobre as espécies madeiráveis mais requeridas pelo mercado internacional (como o cedro, o Ipê e o mogno) e, por fim, as queimadas e agricultura migratória. Primeiro a área é desmatada e depois chegam as pessoas para transformar aquela floresta em terra para a produção agrícola. Quase dois campos de futebol são desmatados por hora.”
Como em outros países amazônicos, a mineração de ouro seguirá funcionando pelas necessidade econômica do Estado boliviano e porque os mineradores constituem um bloco de poder difícil de confrontar.
Como em outros países amazónicos, a mineração de ouro seguirá funcionando pelas necessidades económicas do Estado boliviano.
Sobre os recursos renováveis, Acosta Arce destaca a mineração de ouro: “Por um lado, as mineradoras não cumprem a lei e, por outro, é necessário que haja um aproveitamento racional”. Diariamente, o mercúrio que se utiliza para extrair o ouro é despejado nos rios como o Beni e o Madre de Dios, y, portanto, contamina toda a bacia amazônica. Os problemas de saúde começam aquando o mercúrio é ingerido através do consumo de peixe, um dos principais alimentos das comunidades da região. Como o metal não se decompõe no organismo, prejudica o sistema nervoso, gera deficiências e afeta, especialmente, as mulheres gravidas e, às crianças. Inclusive, foi encontrado mercúrio no leite materno.
O problema da mineração de ouro parece não encontrar uma solução de curto prazo. Como em outros países amazônicos, a mineração de ouro seguirá funcionando pelas necessidade econômica do Estado boliviano e, além disso, porque os mineradores constituem um bloco de poder difícil de confrontar. Por outro lado, Acosta Arce agrega que se deveria realizar um tratamento de mitigação ambiental dos resíduos para que não afetem os corpos d’água. Isto dificilmente acontecerá visto que a graça do uso do mercúrio é o baixo custo. De fato, o principal custo é a saúde dos garimpeiros e os danos à biodiversidade: Um passivo que no impacta o bolso dos empresários.
O Rio Beni e o Estreito de El Bala, uma maravilha da natureza meaçada pela instalação de usinas hidrelétricas. Foto: Damián Andrada
O Rio Beni e o Estreito de El Bala, uma maravilha da natureza meaçada pela instalação de usinas hidrelétricas. Foto: Damián Andrada
Usinas hidrelétricas que ameaçam a área protegida
A menos de uma hora de Rurrenabaque se encontra uma das principais atrações naturais da Bolívia: o Parque Nacional e Área Natural de Manejo Integrado Madidi. O acesso é através do pardo Rio Beni que aguas acima, em apenas 13,3 quilômetros de Rurrenabaque, cruza o maravilhosos Estreito de El Bala. A superfície da área protegida supera os 1.895.750 hectares e se estende de 180 até os 6.000 metros acima do nível do mar, reunindo ecossistemas tão diversos como o altiplano, os yungas, o bosque seco e a pampa. Ademais. Abriga a 33 comunidades indígenas tacanas, lecos e chimanes, e famílias isoladas de araonas. Os turistas fazem excursões de três dias com o objetivo de ver macacos, araras e borboletas. Por outro lado, cruzar com onças ou cobras pode não ter um final feliz.
A guia Rosa os deixa no Posto de Controle de El Bala. Um cartaz grande dá as boas-vindas aos turistas que aproveitam para tirar fotos: “As atitudes que tem hoje com a natureza determinarão o tratamento que receberão seus filhos amanhã”. O guarda florestal explica que “o parque nacional mais diverso do mundo” tem uma área de manejo integrado para que as comunidades indígenas vivam e possam praticar sua agricultura comunitária. Entre as ameaças, está em crescimento o narcotráfico, que conecta Bolívia com Peru, e inclui a construção de pistas de aterrisagem clandestinas. Somam-se a isto o desmatamento, os incêndios florestais e, claro, a chegada de mercúrio por meio dos rios que descem do departamento de La Paz.
Embora o projeto das usinas hidrelétricas empreenda o slogan da “soberania energética”, na verdade ruma manter a Bolívia como o fornecedora de energia de seus países vizinhos.
O projeto das Usina hidrelétricas ruma manter a Bolívia como o fornecedora de energia se seu países vizinhos
Entretanto, a principal ameaça está por um fio. Desde 1958, os governos nacionais planejam construir uma represa hidrelétrica no Estreito de El Bala. O projeto foi retomado em 1998 por Hugo Banzer e, posteriormente, em 2007 por Evo Morales. E é complementada por uma segunda barragem em Chepete, a 70 quilómetros de Rurrenabaque. As barragens atingiriam uma atura de 180 metros juntas teriam uma capacidade instalada de 3.676 MW, com uma geração total de 18.048 GWh por ano. Embora o projeto empreenda o slogan da “soberania energética” e um melhor controle do rio Beni contra transbordamentos durante a estação chuvosa, ele na verdade a Bolívia como fornecedora de energia de seus países vizinhos.
Apesar do alto investimento calculada em 7.000 milhões de dólares e seu grave impacto ambiental, a atual falta de divisas que atravessa a economia boliviana voltou a chamar a atenção do governo nacional. Desta vez sob a liderança de Luis Arce Catacora. As notícias voltaram a alertar não só o povo de Rurrenabaque, que voltaria a ver o turismo afetado, mas também as comunidades indígenas que sofreriam o impacto em seus rios e territórios: Mosetén, Tsimane, Esse Ejja, Leco, Tacana e Uchupiamona.
Debia y Vicente são indígenas tacana da comunidade de San Miguel del Bala. Se dedicam à agricultura, criação de galinhas e o turismo comunitário. Foto: Damián Andrada
Debia y Vicente são indígenas tacana da comunidade de San Miguel del Bala. Se dedicam à agricultura, criação de galinhas e o turismo comunitário. Foto: Damián Andrada
Uma justiça que busca seu lugar
Os povos indígenas e camponeses identificam diversas dificuldades no acesso à justiça. Em primeiro lugar, desconhecem a lei e os procedimentos, por isso destacam a realização de reuniões em que se socializa a norma. Quem conhece a regulamentação acrescenta que as leis não refletem a realidade dos povos indígenas campesinos originários e que existem brechas legais, como a falta de proteção de árvores e plantas medicinais. Desta forma, sentem que as leis são impostas sem levar em conta as pessoas que vivem diariamente no território.
A isso se somam outras dificuldades como a falta de recursos humanos, de orçamento e de conhecimento de quem escreve as leis e executa as ações governamentais nos territórios. Por outro lado, pensando na possibilidade de controle territorial e na atuação das forças de segurança, em áreas onde a economia ilegal é gerida como um peixe na água, com laços transfronteiriços bem oleados e o olho cego dos órgãos governamentais, é um ponto de partida que a maioria não vê possível reverter. Pelo menos no curto prazo.
Com dificuldades, a criação da jurisdição agroambiental, o reconhecimento da justiça indígena e a compreensão da natureza como sujeito de direitos colocam a Bolívia na vanguarda do cenário internacional.
A criação da jurisdição agroambiental, o reconhecimento da justiça indígena e a compreensão da natureza como sujeito de direitos colocam a Bolívia na vanguarda do cenário internacional.
Por fim, questiona-se a igualdade de hierarquias. Embora a Constituição Política do Estado contemple a igualdade, nem sempre ela é cumprida. “A Justiça Indígena Originária Campesina sempre estará subordinada às demais jurisdições”, explica uma liderança camponesa que se revolta porque não é permitido acrescentar hectares de terra para a produção agrícola. A interferência da justiça comum é uma queixa que se repete: o conflito se aprofunda porque essas decisões nem sempre respeitam o que está estabelecido na Constituição.
Quase 15 anos após a nova Constituição Política do Estado, o funcionamento de ambas as jurisdições encontra uma série de obstáculos que retardam o seu potencial democratizante. Ainda assim, olhando para o longo prazo, é inegável que se abriu uma janela de transformação cujos horizontes são imprevisíveis. Com dificuldades, a criação da jurisdição agroambiental, o reconhecimento da justiça indígena e o entendimento da natureza como sujeito de direitos colocaram a Bolívia na vanguarda do cenário internacional.