Cerca de 12 comunidades indígenas do povo Tsimane localizadas na região de Yucumo correm risco de extinção pela invasão de colonizadores, pelo desmatamento e queima de suas casas. Enquanto são despojados de suas terras tradicionais, os tsimanes são discriminados e têm sérias dificuldades para acessar a justiça. Diante do olhar cúmplice do Estado Plurinacional da Bolívia, a violência, as ameaças e o medo são comuns.
Cerca de 12 comunidades indígenas do povo Tsimane localizadas na região de Yucumo correm risco de extinção pela invasão de colonizadores, pelo desmatamento e queima de suas casas. Enquanto são despojados de suas terras tradicionais, os tsimanes são discriminados e têm sérias dificuldades para acessar a justiça. Diante do olhar cúmplice do Estado Plurinacional da Bolívia, a violência, as ameaças e o medo são comuns.
O povo indígena Tsimane é um dos mais numerosos da Amazônia boliviana. Encontra-se disperso em uma área que vai desde o último sopé da cordilheira dos Andes, na serra de Eva Eva, até as margens dos pampas benianos de Moxos, em uma larga faixa de floresta que chega até Ixiamas.
A população Tsimane está dispersa em um complexo sistema de povoamento e ocupação territorial que mantém até hoje. Organizam-se em pequenas comunidades, de seis a sete famílias, geralmente consanguíneas e que se deslocam constantemente entre seus empregos e residências distantes umas das outras. A influência das missões, a construção de rodovias, a chegada de fazendeiros e madeireiros e, nos últimos anos, a avalanche de camponeses da região andina vêm alterando seu sistema de ocupação e mobilidade social.
Devido à sua cosmovisão, este povo não luta por seus espaços e recursos. Em casos de conflitos, as famílias envolvidas tendem a retirar-se e buscar outros lugares para viver, o que se torna algo cada vez mais difícil em um contexto de crescente pressão sobre o território.
O povo Tsimane se encontra disperso sob um padrão de assentamentos semi-nômades conhecido como sóbaqui. Foto: Alcides Vadillo
O povo Tsimane se encontra disperso sob um padrão de assentamentos semi-nômades conhecido como sóbaqui. Foto: Alcides Vadillo
Um povo ambulante
Amantes de sua liberdade e formas de vida, os Tsimane fugiam das reduções de missões e do trabalho patronal (mecanismo de servidão muito comum nas Terras Baixas bolivianas). Entretanto, na década de 1960, a igreja “Novas Tribos”, herdeira do Instituto Linguístico de Verano, ingressou no território Tsimane para evangelizar a população indígena por meio de seus programas de saúde e educação. Atualmente, este povo está dividido por estradas, limites administrativos e níveis de reconhecimento pelo Estado.
O padrão de assentamento seminômade dos Tsimane se caracteriza pelo sóbaqui, que são as visitas que são feitas à ampla rede de parentes espalhados pelo território. Estas viagens são realizadas para morar e trabalhar, por períodos de seis meses a dois anos, com diferentes grupos de familiares. Esta mobilidade constante gera uma alta fluidez na composição dos domicílios e dos assentamentos, característica do povo Tsimane que os governos se recusam a entender.
Existem 12 comunidades no setor Yucumo e quatro em Ixiamas sem reconhecimento legal que estão sendo despojadas de seus territórios ancestrais.
Existem 12 comunidades no setor Yucumo e quatro em Ixiamas sem reconhecimento legal que estão sendo despojadas de seus territórios ancestrais.
A economia do povo Tsimane é de subsistência: vivem da caça, da pesca, da coleta, do aproveitamento dos recursos florestais não madeireiros (especialmente a jatata) e da agricultura. Apesar de não estarem inseridos na economia de mercado, o consumo de alimentos, ferramentas, roupas e remédios de fora da comunidade os leva a uma relação de dependência e intermediação com outros grupos que tendem a enganá-los, explorá-los e despojá-los de seus territórios.
Segundo as próprias lideranças Tsimane, são 164 comunidades distribuídas em diferentes regiões da Bolívia. Com o reconhecimento legal do Estado, são contabilizados 120 comunidades no Território Indígena Chimán, 14 no Território de Pilón Lajas, 6 no Território Indígena Multiétnico (TIM) e 8 no Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS). Por outro lado, existem 12 comunidades no setor Yucumo e 4 em Ixiamas sem reconhecimento legal que estão sendo desapropriadas de seus territórios ancestrais.
Enquanto outras comunidades conseguiram construir relações interétnicas com outros povos, os Tsimanes do setor Yucumo estão sendo desapropriados de suas terras. Foto: Alcides Vadillo
Enquanto outras comunidades conseguiram construir relações interétnicas com outros povos, os Tsimanes do setor Yucumo estão sendo desapropriados de suas terras. Foto: Alcides Vadillo
Os Tsimanes do setor Yucumo
Antes, Yucumo era una pequena comunidade Tsimane, às margens do rio Yucumaj (Yucu, um peixe que habita as águas deste rio, e Maj que significa profundo), no qual foi mudando com a chegada dos imigrantes. Nesta região se encontram as 12 comunidades consideradas como tendo contato recente com a sociedade nacional por meio dos processos de colonização impulsionados em 1974, durante o governo de Hugo Banzer.
O Grande Cacique do Subconselho Tsimane do Setor Yacuma, Rosendo Merena Nate, olha por cima de seus óculos e afirma: “Antes de chegarem os colonizadores, antes de chegarem os karayanas e antes de existir Bolívia, antes de todos eles, os Tsimane já vivíamos aqui. Agora vem o Instituto Nacional da Reforma Agrária (INRA) cavar nossos cemitérios, buscar os ossos de nossos antepassados porque dizem que nós não somos daqui”. O líder é um dos anciãos que ainda se lembra das primeiras disputas por terras no território.
Quando os Tsimanes se deram conta de que era apenas um pedaço da terra, começaram a brigar. “Meu avô, meu sogro, minha sogra, meus tios, todos diziam: ‘Não podem tirar nossa terra assim, é nossa’”, narra Rosendo.
“Meu avô, meu sogro, minha sogra, meus tios, todos diziam: ‘Não podem tirar nossa terra assim, é nossa’”, narra Rosendo.
Rosendo situa os primeiros contatos com terceiros há 34 anos, no final da década de 80, por isso são considerados “contatos recentes”. Por volta de 60 indígenas viviam na comunidade de San Bernardo quando chegaram os primeiros colonizadores, Valentín e Hugo Quispe, com a promessa de formar uma comunidade única e obter projetos para receber máquinas e ferramentas. Além do choque cultural, com o tempo isso significaria a pera sistemática de seus territórios e do controle de seus recursos de vida.
Assim, os Quispe decidiram repartir um pedaço de terra para cada um. O cacique ainda recorda da perplexidade de sua família: “Como meu avô não entendia o que era um lote, disseram-lhe que iam dar-lhe 144 metros de frente e 1.200 de profundidade. Nós não tínhamos ideia do que era um metro. Na nossa língua nos perguntávamos: “Qual será a profundidade?”. Quando perceberam que era apenas um pedaço de terra, começaram a brigar. “Meu avô, meu sogro, minha sogra, meus tios, todos diziam: ‘não podem tirar nossa terra assim, é nossa’, narra Rosendo.
Expulsos de suas próprias terras
Junto ao Quispe e a colonização, chegaram também as máquinas para fazerem as estradas. Quando começaram a derrubar a montanha e fazer barulho, os animais começaram a sumir. Rosendo explica que, dessa forma, a invasão ameaçava o sustento da carne que os Tsimanes comiam: “Então os irmãos diziam: ‘Se essa gente continuar chegando, não haverá mais animais para caçar, nada para comer, nada para a gente’”.
Assim foi o início do conflito em San Bernardo. Embora a princípio os indígenas tenham resistido, logo depois a polícia chegou e os Tsimane não conseguiam mais falar com eles em castelhano para explicar a reclamação. Enquanto isso, os colonizadores conseguiram convencer a polícia de que eram os donos da terra depois da Reforma Agrária. O resultado foi que a polícia terminaram prendendo vários membros da comunidade.
O Estado entregou a eles aquelas terras com os Tsimanes dentro e, posteriormente, retiraram, afirmando que os donos das terras eram os colonizadores.
O Estado entregou a eles aquelas terras com os Tsimanes dentro e, posteriormente, retiraram, afirmando que os donos das terras eram os colonizadores.
“Nós, os Tsimanes, não tínhamos ideia do que poderia ser feito, não tínhamos conhecimento de onde poderíamos ir, não sabíamos a quem reclamar ou quem eram as autoridades. Até agora não sabemos estão os escritórios deles, não sabemos quem são os que têm que dar respostas, nem sequer sabíamos o que era um policial, até que vieram e prenderam alguns irmãos”, lamenta Rosendo.
Hoje em dia, San Bernardo se chama Unkullamaya e já não é mais habitado pelo povo Tsimane. Com a Reforma Agrária, os colonizadores estabeleceram uma espécie de “mosaico” entre Secure e Rurrenabaque com o argumento de que ninguém vivia naquelas terras. Assim, o Estado entregou a eles aquelas terras com os Tsimanes dentro e, posteriormente, retiraram, afirmando que os donos das terras eram os colonizadores.
Os Tsimanes tiveram contato violento com os colonizadores. Apesar de terem resistido, depois não conseguiram se comunicar com as forças de segurança. Foto: Alcides Vadillo
Os Tsimanes tiveram contato violento com os colonizadores. Apesar de terem resistido, depois não conseguiram se comunicar com as forças de segurança. Foto: Alcides Vadillo
Sem direitos sobre sua terra
Diante da chegada de fazendeiros, madeireiros e colonizadores, e da entrada de máquinas que destroem montanhas e abrem estradas, os Tsimanes se refugiaram na floresta para manterem seu modo de vida. Contudo, não importa para onde vão, os “outros” continuam chegando e tirando suas terras deles. Não há mais montanha para onde ir, nem lugares onde a ambição, a propriedade privada, o capital e o Estado não tenham chegado. Não há lugar para se refugiar.
As terras onde vivem seus antepassados e onde vivem atualmente estão sendo invadidas por atores socioeconômicos apoiados pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), que autoriza os assentamentos, e pela Autoridade de Terras e Florestas da Bolívia (ABT), que autoriza o desmatamento e o corte de madeira. Por meio desse mecanismo gera-se o deslocamento forçado de muitas famílias e comunidades.
Os colonizadores viram-se na presença de Tsimanes que expulsaram de maneira violenta: queimaram suas casas, destruíram suas plantações, ameaçaram as pessoas.
Os colonizadores viram-se na presença de Tsimanes que expulsaram de maneira violenta: queimaram suas casas e destruíram suas plantações.
Em 2010, o INRA realizou a regularização da propriedade agrícolas nessa região e se reuniu com algumas dessas comunidades. No entanto, devido ao seu pequeno tamanho (seis a sete famílias), o nível de trabalho agrícola (subsistência) e por sua ausência de documentos de identidade, o INRA não os considerou como comunidades ao definir os direitos de propriedade.
O pior aconteceu em 2018, quando o Estado entregou estas terras a novas comunidades de colonizadores conhecidas como interculturais. Ao chegarem, encontraram a presença de Tsimanes e os expulsaram de maneira violenta: queimaram suas casas, destruíram suas plantações, ameaçaram as pessoas e, espancaram os homens e as mulheres. Os interculturais semearam o medo como estratégia de expulsão contra o olhar cúmplice do Estado Plurinacional da Bolívia.
Consequentemente, entre 2018 e 2020, os Tsimanes processaram o INRA pela alocação de terras para 24 comunidades. Como não receberam resposta, em 9 de março e 28 de abril de 2023 solicitaram um retorno. Entretanto, o INRA segue sem responder, ignorando os direitos dos povos indígenas e as própria normas agrárias.
O Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA) atua em favor dos colonizadores que estão desapropriando os Tsimanes de suas terras. Foto: Alcides Vadillo
O Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA) atua em favor dos colonizadores que estão desapropriando os Tsimanes de suas terras. Foto: Alcides Vadillo
Entre a discriminação e o etnocídio
O povo Tsimane sente-se discriminado e, neste sentido, apresentou um relatório alternativo sobre a discriminação racial ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD). O documento aborda, principalmente, sobre a discriminação no reconhecimento de seus direitos sobre a terra e o território, mas também mostra evidências de como se manifesta em outros âmbitos, dentre elas a justiça, que não podem acessar em igualdade de condições com outros setores da região.
Como denunciados ou acusados, os Tsimanes não têm um mecanismo de defesa real, visto que não há nenhum tipo de autoridade (juiz, promotor ou polícia) que seja do povo ou que entenda sua língua. Pior ainda, não há tradutores e os Tsimanes não podem pagar advogados para sua defesa legal. Como denunciantes, suas apresentações nunca foram acompanhadas ou investigadas no ofício, permanecendo sempre como simples denúncias. Por outro lado, aqueles que atropelam e abusam dessas comunidades indígenas sempre ficam impunes.
A discriminação também é observada na ignorância das próprias autoridades. Foi negado à suas comunidades o reconhecimento de status legal, o que constitui um desconhecimento de sua existência como povo indígena Tsimane e do exercício de seus direitos econômicos, sociais e culturais. Se as comunidades Tsimanes não existem legalmente, na prática isso significa a negação dos direitos de propriedade, participação e desenvolvimento.
A discriminação ao povo Tsimane também é observada no acesso à justiça. Não há pessoas capacitadas para atendê-los. Foto: Alcides Vadillo
A discriminação ao povo Tsimane também é observada no acesso à justiça. Não há pessoas capacitadas para atendê-los. Foto: Alcides Vadillo
O paradoxo do Estado Plurinacional da Bolívia
Quando os Tsimanes de Yucumo contam como são privados e humilhados, você pode sentir a dor e a frustração em seus olhos. Não é justo que o Estado não os escute, que suas demandas por terra e território não sejam ouvidas e que não recebam resposta do INRA. O mínimo que um cidadão merece é que o funcionário público atenda a um pedido, mas os Tsimanes “não possuem esse direito” apesar de serem um povo indígena com direitos específicos reconhecidos pela própria Constituição Política e pelo direito internacional.
A atitude do Estado demonstra o grau de discriminação: para o INRA e para o Estado boliviano, os Tsimanes não existem, nem são cidadãos e não têm identidades e direitos de propriedade. Da mesma forma, os pedidos de legalização de suas comunidades não têm sido ouvidos e foram negados. Para o Estado, essas comunidades indígenas não existem nem têm sua existência reconhecida. Nem de fato nem de direito.
Nos tempos do Estado Plurinacional da Bolívia, nega-se a existência e o reconhecimento legal dos povos indígenas. Que paradoxo!