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Autodeterminação, conservação e Tarimat Pujut na Nação Wampís

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Apesar dos avanços no plano internacional, o ambientalismo e o Estado peruano não reconhecem plenamente o papel desempenhado pelos povos indígenas na proteção da biodiversidade amazônica. Para as comunidades, o homem e a natureza formam um todo e, por tanto, aproveitam os benefícios das florestas, ao mesmo tempo que impõem limites à sua extração. O Governo Territorial Autônomo da Nação Wampís busca implementar um sistema integral de controle territorial baseado em ensinamentos tradicionais, monitoramento constante, justiça indígena e “bionegócios sustentáveis”.

Apesar dos avanços no plano internacional, o ambientalismo e o Estado peruano não reconhecem plenamente o papel desempenhado pelos povos indígenas na proteção da biodiversidade amazônica. Para as comunidades, o homem e a natureza formam um todo e, por tanto, aproveitam os benefícios das florestas, ao mesmo tempo que impõem limites à sua extração. O Governo Territorial Autônomo da Nação Wampís busca implementar um sistema integral de controle territorial baseado em ensinamentos tradicionais, monitoramento constante, justiça indígena e “bionegócios sustentáveis”.

Em seu relatório à Assembleia Geral das Nações Unidas de 2016, a então Relatora Especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, mostrou-se moderadamente otimista sobre o Programa de Ação de Durban da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), proposto em 2003. A especialista leu uma mudança de paradigma na conservação ambientalista a partir do reconhecimento de atuarem conformidade com os direitos dos povos indígenas, povos nômades e comunidades locais. “Ainda falta muito para alcançar essas três metas do Plano de Ação de Durban”, concluiu Tauli-Corpuz.

Nos últimos anos temos sido testemunhas de algumas mudanças positivas no movimento ambientalista internacional diante da demanda dos povos indígenas amazônicos a respeito do direito à titularidade de seus territórios. A nova abordagem das próprias instituições ambientais contribuiu para isso: a proteção indígena das florestas e selvas, que conservam grande parte da biodiversidade da Amazônia, é uma das chaves para o futuro da humanidade. Mas então, o que está faltando?

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O povo Wampís, localizado na Amazônia peruana, tem uma existência de mais de 7.000 anos e possui um apego simbiótico à natureza. Foto: Candy Sotomayor

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O povo Wampís, localizado na Amazônia peruana, tem uma existência de mais de 7.000 anos e possui um apego simbiótico à natureza. Foto: Candy Sotomayor

Um sistema cultural que respeita a reprodução da vida

Um elemento-chave para que o ambientalismo assuma essa nova abordagem de respeito aos direitos indígenas é o reconhecimento da autodeterminação. Isso pressupõe que tanto os ambientalistas quanto as instituições ambientais dos Estados reconheçam, em primeiro lugar, a propriedade indígena sobre seus territórios. Outro aspecto fundamental é a necessidade de compreender a distância existente entre a abordagem paisagista clássica e a intervenção da natureza proposta pelo conservacionismo, em contraposição ao sistema cultural dos povos indígenas.

Originalmente, a abordagem paisagista do ambientalismo propunha proibir o acesso da população local aos seus recursos naturais a ponto de promover sua expulsão, a fim de promover o turismo e diversão. Por outro lado, a abordagem da intervenção da natureza é uma perspectiva mais tecnocrática, economicista e até mercantilista que, a partir do objetivo de conservação, categoriza os espaços e atribui-lhes as categorias de uso ou não uso.

Em um sistema cultural indígena tanto a sociedade como a natureza são parte de um todo integral e atuam em um âmbito de regras de relacionamento e de mútua dependência.

No sistema cultural indígena tanto a sociedade como a natureza são parte de um todo integral e atuam em um âmbito de regras de mútua dependência.

Em vez disso, a lógica da “conservação” indígena é um sistema cultural que rejeita a separação entre a sociedade humana e a natureza, levando à interdependência mútua. A partir dessa cosmovisão, é um erro que o homem se perceba como algo estranho à natureza e a explore intensamente a partir de uma visão de superioridade. No sistema cultural indígena, tanto a sociedade quanto a natureza fazem parte de um todo integral e atuam no âmbito de regras de relacionamento e dependência mútua. Assim, a Nação Wampís fala de “bondade da natureza” para se referir ao que fora é chamado de “recursos naturais”.

Um dos princípios do Tarimat Pujut (bem viver ou vida plena, na língua wampís) reconhece a “esgotabilidade” no tempo dos bens da natureza, por isso sua cultura prescreve práticas que respeitam e cuidam da natureza. Assim, crianças e jovens cresceram aprendendo com suas famílias sobre o uso desses benefícios e, ao mesmo tempo, sobre os limites que devem ser impostos em sua utilização.

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As práticas de respeito e cuidado com a natureza são transmitidas de geração em geração. Foto: Jacob Balzani

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As práticas de respeito e cuidado com a natureza são transmitidas de geração em geração. Foto: Jacob Balzani

O controle territorial da Nação Wampís

Ali onde o estado, os missionários ou os processos socioeconômicos têm concentrado as populações indígenas em assentamentos permanentes, tende a haver uma rápida deterioração dos recursos locais, principalmente da fauna. A mudança cultural promovida pelas escolas leva ao esgotamento localizado e rápido de certos recursos. O leque de opções de “desenvolvimento” não inclui a continuidade de práticas culturais que atendam às necessidades de forma sustentável. Por esta razão, o Governo Territorial Autônomo da Nação Wampís (GTANW) vê a necessidade de reformar o currículo educativo, criar oportunidades para/de “bionegócios sustentáveis” e pensar em novos instrumentos para a proteção do território.

O consumismo e os modelos externos exercem pressão sobre as bondades da natureza e aumentam as ameaças à segurança dos territórios. Portanto, no marco da autonomia e do direito à autodeterminação, o GTANW propõe a implementação de um sistema integral de controle territorial baseado em ensinamentos tradicionais, o estabelecimento de pactos pela natureza em perpetuidade e o uso de ferramentas modernas. Entre elas, cabe mencionar o monitoramento constante do estado das florestas, das nascentes d’água e da fauna, com o objetivo de reforçar acordos e prevenir danos a medida que o mercado valoriza recursos que correm o risco de se esgotarem por meio da exploração intensiva e irracional.

O zoneamento de Wampís reconhece seis categorias, desde as mais restritas em seus usos e culturalmente protegidas até diferentes áreas de exploração.

O zoneamento de Wampís reconhece seis categorias, desde as mais restritas em seus usos e culturalmente protegidas até diferentes áreas de exploração.

A outra ferramenta promovida pelo GTANW é o zoneamento cultural e dinâmico do território, por meio de categorias construídas a partir de avaliações, percepções, necessidades e saberes locais. O zoneamento de Wampís reconhece seis categorias, desde as mais restritas em seus usos e culturalmente protegidas até diferentes áreas de exploração. Ainda está pendente que este macrozoneamento seja trabalhado ao nível dos espaços comuns, entendendo sempre que o território é um património comum herdado dos antepassados. Naturalmente, os pactos internos para a proteção do meio ambiente e a aplicação do zoneamento exigem o fortalecimento do sistema de justiça indígena.

Com base nesse sistema de controle territorial, o GTANW vem promovendo a capacitação e articulação de monitores ambientais que reportam aos Wampís e às autoridades comunitárias, o que requer prevenção precoce. O caso mais recente é o de garimpeiros dedicados à extração de ouro que estiveram presentes nas proximidades do Morro Histórico Paish Nain, no território da comunidade Boca Ayambis, bacia do rio Kanús. A intervenção do GTANW conseguiu fazer com que os garimpeiros ilegais deixassem o local pacificamente. Em outras ocasiões, sob a proteção do direito ao território, o zoneamento e as regulamentações nacionais, a intervenção das autoridades nacionais foi coordenada para desenvolver operações conjuntas, seja contra a mineração aluvial ou contra a extração ilegal de madeira.

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Autoridades do GTANW dialogam com a população sobre o despejo de garimpeiros ilegais em Boca Ayambis. Foto: Nação Wampís

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Autoridades do GTANW dialogam com a população sobre o despejo de garimpeiros ilegais em Boca Ayambis. Foto: Nação Wampís

Desencontros com ambientalismo no território Wampís

Graças a esse sistema cultural, a Nação Wampís cuidou durante séculos da cordilheira Kampankias, uma área crítica para seu território ancestral, na medida em que muitos dos afluentes que alimentam as bacias dos rios Kanús (Santiago) e Kankaim (Morona) se originam lá. De fato, a cordilheira articula de muitas maneiras essas duas bacias que compõem o território Wampís. Dessa forma, além de ser uma área vital para a reprodução dos animais, para os Wampís é um lugar de fortalecimiento espiritual com alto valor cultural.

Tendo em vista a natureza complexa da formação geológica Kampankias e a importância de sua conservação, em janeiro de 1999 as autoridades ambientais do Estado peruano estabeleceram unilateralmente a chamada Zona Reservada Santiago Comainas. As autoridades não se importaram que mediante essa decisão arbitrária o território Wampís se dividisse em dois. Não surpreendentemente, os Wampís, desde então, consideram essa área protegida e a suposta criação de uma reserva comunal como uma tentativa de expropriação territorial.

O conflito reflete a abordagem das instituições ambientais peruanas que, como um soberano absolutista, aponta em um mapa onde as áreas protegidas devem ser criadas.

O conflito reflete a abordagem das instituições ambientais peruanas que indicam em um mapa onde as áreas protegidas devem ser criadas.

O decreto original que estabelecia a zona reservada abrangia uma área substancialmente maior que a atual e até sobrepunha os títulos de dezenas de comunidades dos povos Wampís e Awajún. Após os fortes protestos que colocaram em risco a paz social (que finalmente romperam em 2009, com os Baguazo), o Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas (SERNANP) redimensionou a zona reservada, mas não sua intenção de desapropriar Kampankias. Desde então, houve vários momentos de crise toda vez que o SERNANP pretendia avançar com estudos para sua categorização.

O conflito reflete a abordagem das instituições ambientais peruanas que, como um soberano absolutista, aponta em um mapa onde as áreas protegidas devem ser criadas. Mas acontece que a área que se pretende categorizar é território Wampís há mais de 7.000 anos. Assim, enquanto o “novo paradigma ambiental” de Durban indicava que as áreas de conservação deveriam levar em conta os povos indígenas, o Estado peruano ignorava tanto os direitos indígenas quanto os compromissos assumidos por meio da Convenção 169 e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Até hoje, o Estado peruano continua sustentando que não importa o quanto os povos indígenas reivindiquem como sujeitos de direito. Para o Estado só há comunidades às quais deu título de propriedade, ignorando a realidade dos povos e seus territórios.

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O Estado peruano ignora os direitos indígenas e os compromissos assumidos por meio de instrumentos internacionais. Foto: Pablo Lasansky / IWGIA

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O Estado peruano ignora os direitos indígenas e os compromissos assumidos por meio de instrumentos internacionais. Foto: Pablo Lasansky / IWGIA

Conclusões

No Peru, o mais perto que o ambientalismo está do novo paradigma de Durban e que chama a participação dos povos originários na gestão das áreas protegidas é o estabelecimento de reservas comunitárias. Sua administração tem um regime especial que consiste na assinatura de contratos com o Estado nos quais estão envolvidas as comunidades presentes. O estabelecimento de reservas comunais significa que uma parte do território ancestral passa a ser registrada como área protegida do Estado peruano. Em troca do controle estatal sobre esta porção das terras indígenas, as comunidades obtiveram o “direito de participação”, o que constitui um “branqueamento” de um desapropriação territorial.

Atualmente, há uma dezena de reservas comunitárias em territórios indígenas da Amazônia. Inicialmente, esses contratos foram firmados para preservar áreas que o Estado se recusou a denominar como comunidades indígenas. No entanto, em 1997, a Lei de Áreas Naturais Protegidas nº 26834 integrou as reservas comunitárias ao Sistema Nacional de Áreas Naturais Protegidas pelo Estado (SINANPE) e, em 2001, concedeu-lhes o regime especial. Mais tarde, apesar do fato de que as reservas comunitárias não excluem a sobreposição com lotes de petróleo, organizações e comunidades aceitaram o novo regime porque era a única alternativa aos projetos extrativistas.

Há sempre a expectativa de que o Estado peruano acabe reconhecendo os povos indígenas e seus territórios, ao mesmo tempo que as autoridades ambientais compreendam que áreas críticas podem ser conservadas com base em outros acordos.

Há sempre a expectativa de que o Estado peruano acabe reconhecendo, mais cedo ou mais tarde, os povos indígenas e seus territórios.

No caso da Zona Reservada Santiago Comainas, a instituição ambiental planeja estabelecer uma reserva comunitária na Cordilheira Kampankias. Embora durante o breve governo de transição de Francisco Sagasti (2020-2021), o GTANW tenha conseguido que o então ministro do Meio Ambiente Gabriel Quijandría se comprometesse com uma moratória sobre ações voltadas à sua categorização, a partir de agosto de 2021 tudo voltou ao seu curso normal. Assim, o Estado ignorou os argumentos e direitos da Nação Wampís e demonstrou desinteresse pelas ações realizadas pelo GTANW para proteger seu território.

Há sempre a expectativa de que o Estado peruano acabe reconhecendo, mais cedo ou mais tarde, os povos indígenas e seus territórios, ao mesmo tempo que as autoridades ambientais compreendam que áreas críticas podem ser conservadas com base em outros acordos e pactos de colaboração. Por sua vez, no Protocolo de relacionamento, consulta e diálogo de respeito mútuo da Nação Wampís com o Estado peruano, o GTANW ofereceu caminhos de diálogo para a construção de propostas consensuadas.

Shapiom Noningo é secretário técnico do GTANW.