Ao longo da história, o colonialismo assumiu diferentes facetas. Primeiro foram os missionários religiosos, depois as empresas de borracha e, finalmente, as petrolíferas. Na atualidade, sob uma máscara verde, as ONG ambientalistas continuam o legado de opressão de seus antecessores. Desta vez, a estratégia do denominado capital verde reside em apropriar-se de nossos territórios ancestrais para vender bônus de carbono. Deste modo, a mercantilização dos bosques amazônicos é uma nova tentativa de dividir nossas organizações indígenas. Frente a esta nova avançada, a solução é apostar na autodeterminação da sociedade comunitária do Sumak Kawsay.
Tudo começou com os mercenários vindos da Europa. Eram tropas de ocupação colonial armadas com a espada e a cruz. Em ondas, os conquistadores invadiram nossos territórios ancestrais, ocuparam nossas comunidades e usurparam nossos direitos. Assim, faz 531 anos, começou a história colonial que continua destruindo e explorando o Sumak Kawasay, de nossos povos até a atualidade.
Desde então temos vivido diferentes ondas coloniais: as missões, os seringueiros, os petroleiros, os mineradores e os madeireiros. Eles trouxeram também as epidemias e pandemias que dizimaram muitas vidas de nossos povos: a varíola, o sarampo, a febre amarela, a disenteria e, nos últimos anos, a Covid-19. Nos tempos atuais, o conservacionismo ambiental é uma nova onda colonial que se apresenta como panaceia do marketing ecologista que mercantiliza nossos territórios ancestrais.
Indígenas do povo Shuar-Achuar saudando ao missionário Padre Mattana em 1894. Foto: Anónimo
Indígenas do povo Shuar-Achuar saudando ao missionário Padre Mattana em 1894. Foto: Anónimo
As missões e os seringueiros
As missões foram os rostos coloniais imperiais que nos impuseram um único Deus supremo. Chegaram a nossas terras pelo ano 1600 e ainda seguem aqui. Sua missão foi remover nossa consciência: o yuyay. Colonizaram nossas mentes e esvaziaram nosso pensamento de vida. Prescreveram nossa religiosidade e espiritualidade. Tentaram anular nossa visão do mundo e trataram de apagar nossa história. Para eles não éramos ayllu, quer dizer, não éramos comunidade nem povo, não tínhamos cultura nem direitos. Nos classificaram como criaturas sem alma, como bárbaros infiéis.
Com esta visão divina ocuparam nossos territórios, controlaram a vida de nossas comunidades e tentaram anular nossa visão de territorialidade. Do mesmo modo, desarticularam nossas relações de convivência com todos os seres de nossos bosques e águas e perturbaram o sistema de vida de nossa sociedade comunitária do Sumak Kawsay. Impuseram uma desordem colonial devastadora que conduziu a submissão política, social, cultural e econômica de nossa comunidade durante gerações. Desmancharam nossas formas comunitárias de autogoverno, suplantando nossas autoridades ancestrais por autoridades a serviço dos interesses missionários. Deste modo, exerceram seu poder violentamente.
A extração e comércio da borracha instaurou um sistema escravista perverso, baseado na imposição de dívidas impagáveis e de trabalho forçado para toda vida. As marcas das fazendas seringueiras estão presentes até os dias de hoje na memória.
A extração da borracha instaurou um sistema escravista perverso, baseado na imposição de dívidas impagáveis e no trabalho forçado para toda vida.
Os seringueiros, como chamamos as empresas de borracha que se apoderaram de todos os bosques e rios da Amazônia entre 1789 e 1945, tem sido também um rosto colonial. O auge da borracha amazônica coincidiu com a Primeira Guerra Mundial e o desenvolvimento do pneu para a indústria automotriz. A exploração foi em grande escala, a tal magnitude, que pôs em perigo a sobrevivência dos povos indígenas: nossos ancestrais foram submetidos a crimes contra a humanidade e se instaurou uma prática de extermínio de todas as vidas da Amazônia.
O extrativismo da borracha exacerbou o racismo, a discriminação sociocultural e a exploração econômica contra as comunidades indígenas. Ademais, alterou as práticas ancestrais do sistema comunitário da economia do Sumak Kawsay. A extração e comércio da borracha instaurou um sistema escravagista perverso, baseado na imposição de dívidas impagáveis e o trabalho forçado para toda vida. As marcas coloniais das fazendas seringueiras estão presentes até os dias de hoje na memória de nossas gerações.
Casement com indígenas na fronteira entre Colômbia, Peru e Equador. O diplomático irlandês denunciou as atrocidades da indústria de borracha na África e na Amazônia. Foto: Autor desconhecido
Casement com indígenas na fronteira entre Colômbia, Peru e Equador. O diplomático irlandês denunciou as atrocidades da indústria de borracha na África e na Amazônia. Foto: Autor desconhecido
Os rostos coloniais do império petrolífero e o conservacionismo ambiental
A ocupação de nossos territórios ancestrais por parte das empresas petrolíferas transnacionais é a maior invasão colonial da história contemporânea, depois da conquista europeia e das empresas de borracha. Os efeitos devastadores da extração petroleira também desestabilizam as estruturas comunitárias que sustentam o sistema de vida do Sumak Kawsay em todos seus componentes. O resultado tem sido a exclusão social, discriminação, racismo, pobreza, alcoolismo, dependência de drogas, delinquência, violência familiar e prostituição. Ademais, seu impacto é intergeracional, pois violaram os direitos através de décadas.
Depois do banquete do petróleo, chegou a festa do carbono. No turbilhão do mercado ambiental os povos indígenas são apenas uma pegada de carbono ou, no melhor dos casos, somos uma grama de CO2 negociável a melhor oferta. A nova onda colonial do conservacionismo ambiental é uma avalanche verde que se desliza catastroficamente sobre os territórios dos povos indígenas amazônicos. Desta vez, as empresas coloniais mimetizam sua ambição imperial atrás de um rosto ecológico e se propõem converter nossos territórios ancestrais em cenários da dança mercantil dos capitais verdes e azuis, e dos bônus de carbono.
O objetivo é doutrinar as comunidades com um fundamentalismo conservacionista e ambiental asfixiante, que tentam suplantar e distorcer a essência da filosofia ancestral do Sumak Kawsay.
Para afiançar sua ingerência colonial, as organizações conservacionistas espalham sobre os indígenas uma campanha de marketing mediático ambientalista.
A propagação do conservacionismo ambiental é parte da estratégia colonial das grandes corporações extrativistas que contaminam o planeta e que pretendem roubar os direitos territoriais dos povos indígenas para seguir saqueando a vida. As ONG conservacionistas internacionais, operadoras dos bónus de carbono e capitais verdes, financiadas por grandes corporações, são as encarregadas de implementar a agenda conservacionista colonial sobre os territórios onde vivemos, mantendo as regiões florestais mais importantes do planeta, graças a nossos conhecimentos e saberes ancestrais e nossa visão de vida que é do Sumak Kawsay.
Para afiançar sua ingerência colonial, as organizações conservacionistas espalham sobre os povos indígenas uma campanha envolvente de marketing midiático ambientalista. O objetivo é doutrinar as comunidades com um fundamentalismo conservacionista e ambiental asfixiante, que tenta suplantar e distorcer a essência da filosofia ancestral do Sumak Kawsay que rege a vida comunitária de nossos povos.
Derramamento de petróleo nas margens do Rio Coca na província de Sucumbíos. Foto: Telma Iraburu
Derramamento de petróleo nas margens do Rio Coca na província de Sucumbíos. Foto: Telma Iraburu
Um conservacionismo que busca instalar sua agenda eco capitalista
Na Amazônia equatoriana, as ONG conservacionistas tem-se convertido em monopólios que operam os bónus de carbono e controlam os projetos REDD+ ( Redução das Emissões decorrentes do Desflorestamento e a Degradação dos bosques), alinhadas com as políticas financeiras do capital verde. Seu objetivo é desenvolver as agendas ambientalistas que tem como objetivo central converter os territórios indígenas em mercados de serviços ambientais e instaurar negócios financiados por capitais vinculados ao carbono.
Os projetos REDD+ são um mecanismo internacional criado pela ONU para mitigar a mudança climática e reduzir as emissões de CO2, que é um dos principais Gases do Efeito Estufa (GEI). Os bónus de carbono proveem os recursos para financiar o desenvolvimento dos projetos REDD+. Na província de Pastaza, mais de 10 ONG conservacionistas constituem a denominada Mesa Técnica para a Gestão Ambiental da Área Ecológica de Desenvolvimento Sustentável Provincial de Pastaza (AEDSPP). Desde então, sem consultar as comunidades, promovem suas agendas eco capitalistas sobre os povos indígenas e ofertam para as comunidades projetos clientelistas de suposta mitigação ambiental.
Aprovada essa nova figura jurídica, aproximadamente 5.000.000 de hectares das 11 nacionalidades indígenas da Amazônia equatoriana se converteriam em áreas protegidas.
Aprovada essa nova figura jurídica, 5.000.000 de hectares das 11 nacionalidades indígenas da Amazônia equatoriana e se converteriam em áreas protegidas.
Para materializar sua agenda colonial, estas ONG conceberam o projeto de decreto que estabelece os Princípios Inerentes as “Selva Vivente – Kawsac Sacha” e seus povos originários. Este projeto, que não tem sido consultado com as nacionalidades e povos indígenas, propõe que “os princípios do Kawsak Sacha regem em todos os espaços geográficos do Equador onde existem selvas, bosques, colinas, montanhas, cavernas e outras formações geológicas, elementos naturais do domínio hídrico público (rios, cachoeiras, lagos, fontes de água, etc.), ecossistemas frágeis em geral e mais componentes do patrimônio natural e cultural”.
O projeto coloca que o regime do Kawsak Sacha possibilitaria “a proteção do patrimônio natural e cultural existente nas terras e territórios indígenas, através de uma nova figura jurídica de conservação, que se origina na cosmovisão dos povos originários, o que implica considerar a Selva Vivente o Kawsak Sacha como sujeito de direitos, dotado de vida”. Aprovada essa nova figura jurídica, aproximadamente 5.000.000 de hectares das 11 nacionalidades indígenas da Amazônia equatoriana se converteriam em áreas protegidas e estariam debaixo do Ministério do Ambiente, Água e Transição Ecológica, e o Ministério de Cultura e Patrimônio.
O projeto de decreto sobre a “Selava Vivente – Kawsac Sacha” não tem consultado os povos indígenas. Foto: Kawksacha
O projeto de decreto sobre a “Selava Vivente – Kawsac Sacha” não tem consultado os povos indígenas. Foto: Kawksacha
A ingerência do conservacionismo nos nossos territórios
No caso da nacionalidade Kichwa de Pastaza, a coligação de ONG conservacionistas vem pressionando as organizações para converter 1.400.000 hectares de território ancestral em uma área protegida sob o regimento de conservação denominado “Kawsac Sacha”. Esta ingerência está causando controvérsias entre as comunidades e, particularmente, o povo Kichwa Kawsac Sacha denunciou a utilização arbitraria de sua identidade e exigiu a imediata suspensão do projeto de decreto que vulnerabiliza seu direito territorial.
A história volta a se repetir. As áreas protegidas que existem atualmente na Amazônia do Equador, como o Parque Nacional Yasuní e a Reserva de Produção de Fauna Cuyabeno, foram criadas arbitrariamente pelo Estado mutilando os direitos territoriais das nacionalidades Waorani, Siekopai e Kichwa. Estes territórios foram cenário de graves conflitos que puseram em risco a vida das comunidades.
O cenário se torna mais complexo e conflitante com a ocupação dos territórios indígenas por parte das empresas coloniais de extração petroleira, mineradora e florestal.
O cenário se torna mais conflitante com a ocupação dos territórios indígenas por parte das empresas coloniais de extração petroleira, mineradora e florestal.
Para os povos indígenas do Equador é preocupante a proliferação de projetos de declaração de áreas protegidas promovidas pelas organizações ambientais: ampliação de reservas da biosfera, ampliação das zonas de amortecimento do Parque Yasuní, estabelecimento de corredores biológicos, reservas bioculturais ou áreas intangíveis.
O cenário se torna mais complexo e conflitante com a ocupação dos territórios indígenas por parte das empresas coloniais de extração petroleira, mineradora e florestal. Pior ainda, estas industrias extrativista pretendem controlar pela força os ecossistemas florestais, bacias hidrográficas, biodiversidade e paisagens naturais dos territórios das comunidades.
O Parque Nacional Yasuni abriga uma biodiversidade única no mundo. Foto: SNAP
O Parque Nacional Yasuni abriga uma biodiversidade única no mundo. Foto: SNAP
Descolonizar nossos territórios para resistir a nova onda colonial
As ONG conservacionistas intensificam suas ingerências coloniais com uma clara estratégia de desarticular e desmotivar os processos de construção e exercício pleno dos direitos territoriais, a autonomia e a livre determinação dos povos indígenas. Seu propósito é controlar globalmente os territórios indígenas da bacia amazônica e transforma-los em grandes mercados de carbono e de serviços ambientais. Para assegurar seus objetivos e negócios verdes pretendem controlar as organizações locais e regionais mediante a cooptação de seus dirigentes e o financiamento de micro projetos assistencialistas e clientelistas.
Uma clara evidência da intromissão externa é a profunda crise e divisão que atravessam as organizações indígenas mais importantes em toda bacia amazônica. Com profunda preocupação constatamos, através de nossas memórias coletivas, a agressiva ingerência de empresas transnacionais coloniais que continuam invadindo nossos territórios, transgredindo nossos costumes e espoliando nossos direitos com soberba imperial.
Para fazer frente a esta nova onda colonial de duas faces conservacionista e extrativista é imperativo descolonizar nossos territórios e levantar uma verdadeira agenda de autonomia e livre determinação. Essa deve ser construída desde o coração de nossas comunidades e povos, com nossa própria visão política do Sumak Kawsay. Devemos fazer possível a efetiva soberania de nossos territórios e o exercício pleno de todos nossos direitos conquistados mediante a resistência histórica de nossos povos.