Sally Ann García Taylor é uma mulher raizal, estudou Ciência Política e Governo na Universidade de Rosário e concluiu o mestrado em Estudos do Caribe na Universidade Nacional da Colômbia. É doutora em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia Social pelo Centro de Pesquisas e Estudos Superiores em Antropologia Social do Oeste (CIESAS). Atualmente, ela atua como vice-diretora no Ministério da Prosperidade Social da Colômbia.
Sally Ann García Taylor é uma mulher raizal, estudou Ciência Política e Governo na Universidade de Rosário e concluiu o mestrado em Estudos do Caribe na Universidade Nacional da Colômbia. É doutora em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia Social pelo Centro de Pesquisas e Estudos Superiores em Antropologia Social do Oeste (CIESAS). Atualmente, ela atua como vice-diretora no Ministério da Prosperidade Social da Colômbia.
JMG: Como se constituiu historicamente a etnia raizal que habita o arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina?
SAGT: A formação do povo raizal é produto das dinâmicas e inter-relações que ocorreram em um território fragmentado, mas ao mesmo tempo unido, como é o Mar do Caribe e suas ilhas. Os raizales são descendentes dos primeiros processos de povoamento ocorridos entre europeus e descendentes afrocaribenhos, também pela população negra escravizada e que se combinava com ingredientes asiáticos (como árabes e hindus). Quer dizer, estamos falando de uma espécie de rizoma. É por isso que falamos de processos de crioulização dos povos do Caribe. Então, para pensar nas raízes, é preciso começar reconhecendo essa soma de partes e, ao mesmo tempo, esse caldeirão.
JMG: Podemos falar de um processo de crioulização no caso do povo raizal?
SAGT: Qualquer um diria que estou fazendo apologia a miscigenação, mas é importante falar sobre o Caribe e entender que é uma população nativa específica, e que, além disso, há indígenas que se cruzaram nessa matriz interétnica. Todos convergiram para o território do arquipélago, dando substrato ao que conhecemos hoje como povo raizal. Em algumas construções que partem do campo político, mas também do acadêmico, ficou implícito que os raizais se limitam apenas à parte afrodescendente ou à parte da herança e influência da Igreja Batista porque foram os primeiros artífices dos processos de emancipação e libertação da escravidão.
JMG: Como é a ligação com a população colombiana?
SAGT: Os raizales são aqueles nascidos no arquipélago e são produto de um processo de diferenciação para se desprender da influência dos nativos colombianos que vieram do continente e que, quando começaram a se estabelecer na ilha, se autodenominavam San Andresans. Então, os raizal se viram obrigados a se diferenciar de todas essas populações. Embora os raizales sejam colombianos, era preciso fazer uma certa diferença: a identidade dos nativos tentava ser diluída por um empreendimento de integração nacional promovido a partir do centro de poder do país. Naquela época, a construção do Estado-nação exigia uma visão monolítica: todos nós tínhamos que ser crentes no mesmo Deus e falantes da mesma língua. E, claro, essa visão não nos representava nem nos incluía raízes.
Sally Ann Garcia Taylor é empossada como diretora-geral assistente para a superação da pobreza, Departamento Administrativo para a Prosperidade Social. Foto: Twitter
Sally Ann Garcia Taylor é empossada como diretora-geral assistente para a superação da pobreza, Departamento Administrativo para a Prosperidade Social. Foto: Twitter
JMG: Como tem sido a relação histórica com o Estado?
SAGT: O Estado colombiano sabia que tinha algumas ilhas que estavam sob seu domínio, sob sua tutela, mas não as conhecia por causa da distância geográfica, da distância cultural, e porque o povo raizal fala inglês e tem uma relação mais próxima com o Caribe. Para o Estado, eram territórios inóspitos, desconectados e até “incivilizados”. Consequentemente, tem sido uma relação oscilante entre a presença e a ausência do Estado. O ponto de conflito sempre foi que a presença do Estado implicava a imposição de uma visão, sem querer entender como são as ilhas. Quando finalmente queriam compreendê-los, era para dominá-los e não os reconhecê-los ou aceitá-los.
JMG: Então foi uma relação conflituosa?
SAGT: Quando você inicia um relacionamento nesses termos, o resultado será mais ou menos conflituoso. Às vezes haverá empatia e compreensão sobre o que querem os raizales, mas também haverá momentos em que o Estado não responderá às suas demandas. Os movimentos de separação no Caribe também desempenham um papel nisso. Lembremos que em 1903 a Colômbia perdeu um território muito grande (o atual Panamá) e isso causou o medo de perder também as ilhas de San Andrés e Providencia. Então, o medo da perda de mais territórios levou o Estado colombiano a não reconhecer plenamente aquele outro que é diferente. Nesse contexto, houve momentos críticos de distanciamento que nos levaram a pensar no caminho da separação. Em outros momentos, buscaram nos integrar, aceitando as diferenças e promovendo políticas públicas que respeitassem a especificidade do território.
JMG: O povo raizal pensou em separação?
SAGT: De fato, em alguns momentos, houve reações, às vezes fortes e de luta, de certos setores dos Raizales, para exigir a separação do Estado colombiano. Mas, em outras etapas, a integração também tem sido buscada com base no respeito à diferença, ou seja, uma relação entre iguais. É importante ressaltar que há um mito fundante de que nos unimos ao Estado colombiano em um ato livre e voluntário: esse mito esconde o fato de que já estávamos em sua jurisdição desde sempre, antes da fundação do Estado.
JMG: Como o povo Raizal vivenciou os momentos de integração?
SAGT: Quando o Estado colombiano tentou integrar as ilhas, foi por meio de medidas que promoveram um processo de embranquecimento e assimilação cultural em que aqueles que se consideravam diferentes se tornariam minoria. E foi o que aconteceu ao longo do século XX. Isso também gerou uma reação e uma mobilização cidadã pedindo medidas especiais para conter o crescimento acelerado da população. Outro modo indesejado de integração foi a devastação ambiental gerada pela chamada “modernização”: o Estado passou a pensar nas ilhas como uma espécie de porto livre ou como território para construir um aeroporto internacional. Ao projetar uma infraestrutura de tal magnitude, os direitos fundiários das famílias raizais que viviam na área central da ilha foram dizimados.
Sally Ann García Taylor durante os Diálogos Sociais para a elaboração de políticas públicas com o povo e organizações Raizal na ilha de San Andrés. Foto: Twitter
Sally Ann García Taylor durante os Diálogos Sociais para a elaboração de políticas públicas com o povo e organizações Raizal na ilha de San Andrés. Foto: Twitter
JMG: Quais têm sido as demandas do povo raizal?
SAGT: Sempre houve uma alegação persistente de que as ilhas não eram tratadas com justiça, que não tinham serviços públicos de qualidade ou que os impostos eram excessivos. No final da década de 1980, houve mobilizações cidadãs para influenciar a construção da Constituição Política de 1991, que foi um divisor de águas para o povo raizal, pois antes não sabíamos muito bem a que categoria de cidadãos pertencíamos. Foi somente com a Constituição de 1991 que os raizales começaram a participar ativamente de uma democracia. Até então, acreditava-se que a categoria de afrocolombiano era suficiente para incluir os habitantes dos territórios caribenhos. O que não foi o caso. O Estado colombiano pensou: “É isso, vamos incluí-los e não precisamos ter um olhar especial”. Pelo contrário, havia problemas tão sensíveis que se podia dizer que as raizales precisavam de um olhar especial, como no caso da superpopulação. Foi assim que finalmente se conseguiu a inclusão do artigo 310 da Constituição Política, que reconhece o arquipélago como um território especial que necessita de medidas especiais. A partir desse reconhecimento, passamos a discutir o que entendemos por autonomia ou o que significa tratamento especial.
JMG: O senhor poderia explicar qual é o estado atual da autonomia?
SAGT: Para construir autonomia é preciso partir de um processo comunitário e inclusivo que reconheça os diferentes vetores que fazem parte do povo raizal. Esse processo é heterogêneo tanto em sua origem quanto em seu desenvolvimento e, portanto, há divergências de visões entre o que pensam nossos idosos, o que pensam as novas gerações e o que pensam as mulheres. Essa heterogeneidade ficou turva dentro da construção do Estatuto.
Sally Ann García Taylor explica que a elaboração de um Estatuto Autónomo Raizal inclui questões complexas como o limite fronteiriço do arquipélago. Foto: Arquivo Pessoal
Sally Ann García Taylor explica que a elaboração de um Estatuto Autónomo Raizal inclui questões complexas como o limite fronteiriço do arquipélago. Foto: Arquivo Pessoal
JMG: Como o Estatuto Autónomo Raizal tem avançado?
SAGT: O Estatuto da Raizal é um cavalo de batalha para continuar a manter a atenção do Estado. E esse processo foi decisivo para a decisão de 2012 em Haia, durante o governo de Juan Manuel Santos, por meio da qual a Corte Internacional decidiu a favor da Nicarágua e a Colômbia perdeu 75.000 km2 no Mar do Caribe, incluindo as áreas marinhas ao redor do arquipélago. A crise gerada pela decisão possibilitou uma nova relação entre a Colômbia e as ilhas: os raizales achavam que não havia mais desculpas para não aceitar nossas demandas. Foi quando começou a ocorrer a construção de um Estatuto.
JMG: Quais são os desafios para a formulação do Estatuto?
SAGT: Uma questão importante é a delimitação de fronteiras: qual o limite do arquipélago? Essa pergunta não pôde ser respondida e foi postergada nos artigos do Estatuto pela simples razão de que sua elaboração não foi participativa. Apenas os membros da Autoridade Raízal, mais conhecido como Conselho Raízal, que é composta por 22 raizales da ilha de San Andrés e 11 da ilha de Providência, participaram e trataram do assunto a portas fechadas. Embora se soubesse que se tratava de elaborar um Estatuto, o processo de sua construção não foi amplamente socializado.
JMG: E como foi a relação com as comunidades não-raizais durante essa escrita?
SAGT: Havia tensões interétnicas dos Raizal que pensavam ter sido deslocados pelos não-raizal. Por outro lado, perguntavam-se: “O estatuto significa que nós não-raizais temos de sair daqui?” Alguns raizales tinham uma postura mais conflitiva e diziam que quem não era do território deveria sair. Havia muito ressentimento. Como gerir um Estatuto que harmonize isso? É difícil porque o Estatuto Raizal, para além de defender a nossa cultura e o nosso território, tem de defender também o arquipélago.
JMG: O que há de diferente no governo de Gustavo Petro e Francia Márquez em termos de relações com o povo raizal?
SAGT: Esse governo tem empatia por algumas demandas do povo raizal e parece que o Estatuto pode sair. No entanto, acredito que o Estado tem falhado na gestão do diálogo social e na forma como lida com os grupos que de alguma forma têm ou não influência na construção deste Estatuto. O Estatuto não pode ficar apenas como um marco dos raizais, tem também de ser socializado com as outras etnias que vivem nas ilhas, uma vez que é a defesa de todo um território e do carácter especial que sua gestão exige. Parece-me que é importante reivindicar e reconhecer a base dessas demandas e não as ver como um perigo, mas como algo que pode melhorar essa relação com a Colômbia a partir de um plano de diferença.