Crioulos na Nicarágua: demarcação territorial, autodeterminação e resistência

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Desde a época da colônia e da escravidão, a população de origem africana enfrenta dificuldades para ser reconhecida como sujeitos de direito. Na América Central, eles passaram por séculos de resistência para serem aceitos primeiro como povo e depois como cidadãos das repúblicas. Atualmente, a comunidade afrodescendentes na Nicarágua luta pela demarcação, titulação e saneamento de suas terras ancestrais, ao mesmo tempo que busca condições iguais às de outras comunidades indígenas e afrodescendentes para o seu desenvolvimento. Enquanto isso, as concessões de mineração, exploração madeireira e pesqueira, e o uso do território para megaprojetos e monoculturas, se expandem em suas terras.

Desde a época da colônia e da escravidão, a população de origem africana enfrenta dificuldades para ser reconhecida como sujeitos de direito. Na América Central, eles passaram por séculos de resistência para serem aceitos primeiro como povo e depois como cidadãos das repúblicas. Atualmente, a comunidade afrodescendentes na Nicarágua luta pela demarcação, titulação e saneamento de suas terras ancestrais, ao mesmo tempo que busca condições iguais às de outras comunidades indígenas e afrodescendentes para o seu desenvolvimento. Enquanto isso, as concessões de mineração, exploração madeireira e pesqueira, e o uso do território para megaprojetos e monoculturas, se expandem em suas terras.

A resiliência da população crioula afrodescendente da Nicarágua tem enfrentado múltiplos desafios numa sociedade marcada por um sistema social injusto, discriminatório e racista, que tem tentado relegar as suas lutas a ações irrelevantes ou esporádicas. De modo contrário ao povo, que assumiu responsabilidades destinadas a exigir os seus direitos e a definir o seu lugar na história da costa caribenha.

A população crioula afrodescendente da Nicarágua surgiu quando escravos de origem africana fugiram das plantações do Caribe, por volta de 1640, estabeleceram-se no território conhecido como Mosquitia e formaram famílias com povos indígenas e, posteriormente, europeus. Muitas famílias adotaram os sobrenomes dos traficantes de escravos, principalmente ingleses e holandeses, e transformaram a língua inglesa em um dialeto próprio que hoje é conhecido como inglês crioulo. Posteriormente, mais escravos livres se juntaram, fundindo diferentes tribos africanas.

Nessa miscigenação, homens e mulheres crioulas afrodescendentes tiveram um papel preponderante na conservação dos costumes através da história oral, da gastronomia, das danças, da cultura, da medicina tradicional e da espiritualidade que sobrevivem até hoje.

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A conservação da cultura é fundamental para os crioulos. Comemoração pela emancipação da escravidão em Bluefields. Foto: CRACCS

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A conservação da cultura é fundamental para os crioulos. Comemoração pela emancipação da escravidão em Bluefields. Foto: CRACCS

A fragmentação da Mosquitia

Localizado na costa caribenha da América Central, este território foi dividido de forma estratégica para facilitar o processo de incorporação aos Estados da Nicarágua e Honduras. Primeiro, Inglaterra fundou um reinado indígena e “colocou-o sob sua proteção”. Em seguida, através dos tratados Zeledón-Wyke (1860) e Harrison-Altamirano (1905) para a Nicarágua, e o Wyke-Cruz (1859) para Honduras, o território da Mosquitia e sua população foram incorporados a ambos os Estados.

Os tratados deram origem à desapropriação das terras ancestrais dos afrodescendentes e indígenas que não foram consultados nem informados sobre essa decisão. O território indígena anexado à Nicarágua tornou-se reserva para que o governo de Mosquitia pudesse continuar, mas com restrições territoriais. Além disso, a sua forma de governo passou de monarquia indígena para um governo indígena e afrodescendente com um chefe hereditário definido no conselho de governo.

Como as repúblicas se formaram com a presença dos povos afrodescendentes, os povos crioulos dessa região possuem uma história similar de exploração, colonização, pobreza e discriminação à outras minorias étnicas.

Os povos crioulos da região possuem uma história similar de exploração, colonização, pobreza e discriminação à de outras minorias étnicas.

Após sua incorporação à Nicarágua, o território sofreu diversas denominações: Reserva de Mosquitia, Costa Atlântica, Departamento de Zelaya, Zonas Especiais I, II e II, regiões Autônomas e hoje Costa do Caribe. Neste processo, novos limites foram estabelecidos com os países vizinhos e de mesma divisão político-administrativa da Nicarágua. Além disso, o arquipélago de San Andrés, uma parte importante de Mosquitia, foi incorporado à Colômbia.

Esses territórios desarticulados têm sido zonas de influência cultural do povo crioulo que ao longo dos séculos manteve um estreito vínculo linguístico e familiar, assim como intercâmbio comercial. Por outro lado, como as repúblicas se formaram com presença dos povos afrodescendentes, os povos crioulos da região possuem uma história similar de exploração, colonização, pobreza e discriminação à outras minorias étnicas. Assim, tiveram que lutar durante séculos a nível nacional e internacional para demandar direitos históricos que foram reconhecidos por força de leis e estatutos.

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Bluefields no final do século XIX. Durante esses anos, os povos indígenas e os afrodescendentes sofreram com a desapropriação de suas terras ancestrais. Foto: NotiBluefields

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Bluefields no final do século XIX. Durante esses anos, os povos indígenas e os afrodescendentes sofreram com a desapropriação de suas terras ancestrais. Foto: NotiBluefields

A demanda de participação efetiva

Embora nos últimos anos o marco legal tenha aberto espaços para que a população indígena e afrodescendente possam ocupar posições de relevância na vida social, religiosa e política, o seu cumprimento ainda não está garantido dada a forte incidência dos partidos políticos nacionais nos assuntos da Costa do Caribe. Essas práticas reduzem a participação das comunidades indígena e da população nativa nos espaços de poder.

Por outro lado, o mesmo sistema político utiliza a figura dos afrodescendentes em temas políticos nacionais: pode-se observar homens e mulheres crioulas na presidência do Conselho Regional Autônomo do Sul do Caribe, na Assembleia Nacional, no Supremo Tribunal de Justiça, no Supremo Conselho Eleitoral, no gabinete do prefeito de Bluefields, nos governos comunais e territoriais paralelos (criados com fins partidários) e na chefia das universidades comunitárias. Entretanto, os crioulos que ocupam estes cargos altos não têm poder de decisão porque, para a estrutura do Estado nacional e seu interesse, procuram apenas fingir o direito à participação e à não discriminação.

Por outro lado, o governo central se recusa a assumir sua responsabilidade para proteger a população indígena e afrodescendente diante da invasão dos colonos em terras comunais. Apesar da Lei de Autonomia e da Lei de Demarcação Territorial que tutelam os direitos ancestrais indígenas e afrodescendentes, e da aprovação por parte das Nações Unidas da Década Internacional dos Povos Afrodescendentes (2015-2024), a reposta do governo tem sido o silêncio: não existem investigações nem sanções aos responsáveis. A negligência do estado para tutelar seus direitos coletivos e individuais é uma forma de violência que aprofunda a discriminação e uma estratégia do governo para colonizar as terras que não foram alcançadas nos tempos da colonização nem durante a anexação da Mosquitia. Neste processo, as mulheres foram as que mais exigiram que o Estado da Nicarágua respeitasse e limpasse o seu território.

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O governo central se recusa a proteger a população indígena e afrodescendente diante da invasão de colonos em terras comunais. Foto: Mawarat

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O governo central se recusa a proteger a população indígena e afrodescendente diante da invasão de colonos em terras comunais. Foto: Mawarat

O marco jurídico e a defesa do direito ao território

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre o caso Comunidade Mayangna de Awas Tingi versus Estado de Nicarágua abriu um precedente para que todos os povos indígenas da Costa do Caribe da Nicarágua se organizassem em suas assembleias comunais com o objetivo de fortalecer seus governos comunais e territoriais, e demandar à Comissão Nacional de Demarcação e Titulação (CONADETI) a demarcação, titulação e saneamento de suas terras ancestrais.

A Lei de Demarcação Territorial, aprovada na Assembleia Nacional em 13 de dezembro de 2002, não distinguiu direitos entre os povos indígenas e afrodescendentes; mas incluiu como sujeitos de direitos a comunidade étnica afrodescendente instalada no território de Mosquitia. Na verdade, no seu quadro conceitual, a mesma lei se refere à comunidade étnica como sendo a população de ascendência afro-caribenha.

A comunidade crioula de Bluefields continuou fortalecendo sua demanda com a elaboração de seu diagnóstico territorial de 2012, que justificava sua reivindicação exigindo tratamento igualitário a outros territórios indígenas e afrodescendentes.

Diferentemente do que ocorreu com os povos indígenas, a população afrodescendente crioula não conseguiu a aprovação do seu pedido até 2010.

Nesse contexto, a comunidade afrodescendente crioula de toda Costa do caribe e a população afrodescendente Garífuna apresentaram em 2006 uma solicitação para demarcar suas terras comunais. Contudo, diferentemente do que ocorreu com os povos indígenas, a população afrodescendente crioula (especialmente do território de Bluefields) não conseguiu a aprovação do seu pedido até 2010. As razões e motivos não foram muito claros dado que a Lei N° 445 do Regime de Propriedade Comunal dos Povos Indígenas e Comunidades Étnicas contemplava um prazo mais ágil para responder diante da população solicitante.

Durante o período de espera, a comunidade crioula de Bluefields continuou a organizar e fortalecer a sua reivindicação com a elaboração do seu diagnóstico territorial de 2012, que justificava sua reivindicação de terras ancestrais exigindo tratamento igualitário a outros territórios indígenas e afrodescendentes. Nesse tempo, realizaram-se importantes acordos de convivência com os territórios vizinhos do povo Rama e Kriol (crioulo), no sul do território Bluefields, e com as autoridades das dez comunidades indígenas e afrodescendentes da Bacia Laguna de Perlas.

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A comunidade crioula continua exigindo pela demarcação de suas terras ancestrais. Foto: APIAN Nicaragua

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A comunidade crioula continua exigindo pela demarcação de suas terras ancestrais. Foto: APIAN Nicaragua

Territórios titulados na Costa do Caribe

Até o momento, existem 24 territórios indígenas e afrodescendentes titulados que abrangem mais de 300 comunidades. Contudo, nenhum território conseguiu iniciar a fase de saneamento territorial. Pelo contrário, têm sofrido uma invasão constante de colonos mestiços vindos do Pacífico, centro e norte do país. Por sua vez, o Governo Nacional alega que não serão tituladas mais terras comunais, que os territórios titulados representam 32% do território nacional e que estão protegidos constitucionalmente.

Pelo contrário, apesar da promulgação da Lei n.º 445, há mais insegurança nos territórios comunais porque os conselhos regionais autónomos concederam importantes concessões de explorações mineiras, madeireiras e pesqueiras em territórios titulados. Da mesma forma, o Governo Nacional não permitiu que a comunidade crioula afrodescendente do território da Ilha Corn titulasse a sua propriedade comunal, alegando que todo o seu território era privado e não fazia parte do processo de demarcação.

É importante notar que as definições de território comunal e propriedade comunal, conforme a Lei 445, obriga o Estado a responder diante da demanda de demarcação dos territórios indígenas e afrodescendentes. Mas o estado ignora e não resolve os pedidos de demarcação dos crioulos de Bluefields e de Corn Island. Pior ainda, embora existam conflitos em todos os territórios demarcados, o Governo Nacional e os governos regionais autônomos, com a aprovação do Supremo Tribunal de Justiça, criaram governos comunais paralelos para reduzir a reivindicação territorial e permitir concessões em terras comunais.

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Concessões de recursos naturais em territórios titulados

A Lei de demarcação territorial veio regular, pela primeira vez, tanto a relação entre os níveis de governo da Costa do caribe como os procedimentos de outorga de concessões e contratos de exploração dos recursos naturais do solo e subsolo em terras indígenas. A lei também destaca a importância da consulta livre, prévia e informada às comunidades. Apesar deste avanço normativo, têm existido anomalias na entrega de concessões de mineração, de exploração de madeira, hidrocarbonetos e pesca, e no uso do território para megaprojetos e monoculturas.

Desde a promulgação do Estatuto de Autonomia (Lei 28) em 1987 e a instalação em 1990 dos primeiros Conselhos Regionais na Costa do Caribe, a estrutura hierárquica na Nicarágua sofreu mudanças na tomada de decisões relativas a questões sociopolíticas e económicas. Em primeiro lugar, o direito de eleger um Conselho Regional com representação de todas as etnias e, em segundo lugar, a eleição de um coordenador de governo do Conselho Regional. Estas mudanças na Mosquitia anterior apresentaram desafios de governança, tanto para o Estado nicaraguense, como para os povos indígenas e afrodescendentes.

As concessões de mineração, de exploração de madeira e de pesca, e os projetos de monocultivo de palma africana e pecuária extensiva em terras comunais violam os direitos de territórios indígenas e crioulos afrodescendentes.

A aprovação do projeto hidroelétrico Tumarin isolou o território de Awaltara lupia Nani para atender as demandas dos investidores.

Infelizmente, o Conselho Regional já não discute as questões das regiões autónomas, mas sim cumpre as orientações emitidas pelo governo nacional através do Secretariado da Costa do Caribe e do secretário político de serviço nas regiões autónomas. Um exemplo disso é a aprovação do projeto hidrelétrico Tumarin que isolou o território de Awaltara lupia Nani para atender às demandas dos investidores. Outro exemplo é a construção de um porto de águas profundas no território Bluefields, que faz parte do Grande Canal Interoceânico da Nicarágua. Este projeto recebeu o aval do Conselho Regional do Sul do Caribe em 2013 sem que as comunidades fossem consultadas, o que violou a lei de Autonomia, Demarcação Territorial, Municípios e a Convenção 169 da OIT.

Por outro lado, as concessões de mineração, exploração de madeira e pesca, e os projetos de monocultura de palma africana e de pecuária extensiva em terras comunais infringem os direitos dos territórios indígenas e crioulos afrodescendentes de Bluefields, Pearl Lagoon e Rama Kriol. Para aprová-los, o modus operandi dos Conselhos Regionais é criar governos comunais paralelos com povos indígenas e afrodescendentes pertencentes às estruturas político-partidárias.

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O projeto hidroelétrico Tumarín fez com que a vazão do Rio Grande de Matagalpa diminuísse. Foto: Onda Local

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O projeto hidroelétrico Tumarín fez com que a vazão do Rio Grande de Matagalpa diminuísse. Foto: Onda Local

Os desafios do povo crioulo

A partir destas experiências, o processo de autonomia e demarcação territorial devem ser oportunidades para que homens e mulheres afrodescendentes crioulas fortaleçam os espaços de participação em todos os aspectos da sociedade, diferenciando entre interesses políticos partidários e demandas sociocomunitárias. A partir desses espaços, devem contribuir para melhorar a vida da população, em geral, e dos afrodescendentes, em particular.

Neste novo contexto social, a população crioula afrodescendente tem o desafio de manter as suas reivindicações por justiça perante os sistemas nacionais e internacionais. O objetivo é proteger as suas terras comunais, os seus modos de vida, a sua identidade e a sua cultura através do quadro jurídico existente. Na verdade, os direitos humanos dos povos afrodescendentes gozam de maior consenso para que as vozes das mulheres e dos homens afrodescendentes possam ser ouvidas.

A sociedade multiétnica, multilíngue e multicultural nicaraguense também enfrenta grandes desafios para construir um novo sistema de educação que respeite mais as culturas e os direitos de todos os povos. Nicarágua vive em um sistema patriarcal imposto por um Estado que tem mantido um sistema interno de colonização de suas terras comunais, o que limitou o exercício efetivo dos direitos históricos da população afrodescendentes crioula.