Recuperações de facto em territórios indígenas na Costa Rica

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Associação de Mulheres Indígenas Kábata Könana. Foto: Aliança Mesoamericana

A nível regional, o país centro-americano é reconhecido pelos seus elevados índices de qualidade democrática e de desenvolvimento humano. No entanto, não consegue canalizar as disputas territoriais por meio do diálogo político. Enquanto os colonos mestiços ocupam as terras para a pecuária e a monocultura, os indígenas buscam recuperar seus territórios de fato. Perante a inação do Estado, o povo e os seus dirigentes clamam pela paz e pedem que os seus direitos territoriais sejam respeitados.

“Não há nada de romântico na recuperação de terras quando o que emerge é a violência. Para nós é arriscar a nossa vida, a nossa segurança, perder o direito de viver em paz, de ter uma vida saudável.”
Elides Rivera – líder indígena Bröran de Térraba

Durante muitos séculos, os povos indígenas viveram diferentes episódios de violência estrutural e sistemática, tanto durante a colonização externa como durante a colonialidade interna, ou seja, a violência e a desapropriação sofridas após a independência das potências hegemônicas do século XIX. Dessa forma, foram criadas diferentes estruturas sociais, articuladas sob o manto do racismo e do controle do trabalho característico do capitalismo. Sem dúvida, a colonialidade do poder é o elemento central da estruturação da sociedade na América Latina.

É neste contexto de colonialismo interno que se destaca a recuperação de terras ancestrais, empreendida por meios de facto, pelos povos indígenas da Costa Rica. Isto gerou ondas de violência contra a segurança destas cidades. Aqui há duas posições principais dicotômicas e contraditórias: por um lado, as comunidades procuram recuperar terras porque isso lhes daria paz com a natureza e garantiria a vida dos seus filhos; por outro lado, os assentados denunciam que os violentos são os indígenas e não eles. Então, estamos diante da ausência de uma cultura de paz.

Nestes processos de recuperação do território, desempenham um papel muito importante as mulheres indígenas, que contribuem com as suas formas de pensar e com as suas estratégias na resolução de conflitos numa perspectiva de gênero. Ressalta-se que as práticas dos não indígenas que ocupam legalmente (ou ilegalmente) terras ancestrais são incompatíveis com as culturas nativas. Isto causa conflitos que vão desde discussões sobre como a terra deve ser usada até confrontos frontais durante as recuperações reais.

Adriana Fernández Zuñiga e Doris Ríos Ríos, mulheres do povo Cabécar. As mulheres indígenas desempenham um papel extremamente importante no diálogo, nos acordos e na segurança nos seus territórios. Foto: Cultural Survival

Reconhecimento legal dos povos indígenas da Costa Rica

Oito povos indígenas vivem na Costa Rica: Huetar, Maleku, Bribri, Cabécar, Brunka, Ngäbe, Bröran e Chorotega. Segundo o Censo Nacional de 2010, são pouco mais de 100 mil pessoas que representam 2,4% da população e vivem em 3.344 quilômetros quadrados (7% do território nacional). Num país onde quase 20% da população vive abaixo do nível de pobreza, no caso dos povos indígenas esta percentagem atinge números alarmantes: Cabécar sobe para 94,3%; Ngäbe, 87%; Broran, 85%; Bribri, 70,8%; Brunka, 60,7%; Maleku, 44,3%; Chorotega, 35,5%; e Huétar, 34,2%.

A Constituição Política da República da Costa Rica reconhece a diversidade cultural do país no seu artigo 1: “A Costa Rica é uma República democrática, livre, independente, multiétnica e pluricultural”. Ao mesmo tempo, no artigo 76, o Estado reconhece as línguas indígenas e assume a obrigação de promovê-las: “O espanhol é a língua oficial da nação. No entanto, o Estado garantirá a manutenção e o cultivo das línguas indígenas nacionais.”

Oito povos indígenas vivem na Costa Rica: Huetar, Maleku, Bribri, Cabécar, Brunka, Ngäbe, Bröran e Chorotega. De acordo com o Censo Nacional de 2010, são pouco mais de 100 mil pessoas que representam 2,4% da população.

Oito povos indígenas vivem na Costa Rica: Huetar, Maleku, Bribri, Cabécar, Brunka, Ngäbe, Bröran e Chorotega.

No que diz respeito ao reconhecimento do direito ao território, a Lei Indígena nº 6.172 de 1977 cunha a seguinte definição de povos indígenas: “Os povos indígenas são pessoas que constituem grupos étnicos descendentes diretos de civilizações pré-colombianas e que preservam sua própria identidade”. Por sua vez, o artigo 2º afirma que as comunidades têm plena capacidade jurídica para adquirir direitos e contrair obrigações de todos os tipos.

E o artigo 3º estabelece: “As reservas indígenas são inalienáveis e imprescritíveis, intransferíveis e exclusivas das comunidades indígenas que as habitam. Os não indígenas não poderão alugar, arrendar, comprar ou de qualquer outra forma adquirir terras ou propriedades incluídas nessas reservas. Os povos indígenas só poderão negociar suas terras com outros povos indígenas. Qualquer transferência ou negociação de terras ou benfeitorias das mesmas em reservas indígenas, entre indígenas e não indígenas, é absolutamente nula, com as consequências jurídicas do caso (…)”.

A Frente Nacional dos Povos Indígenas (FRENAPI) representa cinco dos oito povos indígenas da Costa Rica e trabalha na defesa das terras indígenas. Foto: Cultural Survival

Recuperação por meios de facto

Apesar das terras indígenas gozarem de proteção jurídica desde 1977 e de, além disso, a Costa Rica ser signatária da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é o tratado com maior peso jurídico em termos de proteção de direitos coletiva e individualmente dos povos indígenas e tribais, as pessoas continuam a ser vítimas da desapropriação dos seus territórios ancestrais.

O líder indígena do povo Broran, Pablo Sibar, argumenta: “Temos documentação de 1940-1956, onde os mais velhos alegavam que os colonos estavam invadindo suas terras e pediam ao Governo que resolvesse o direito à terra o mais rápido possível porque eles estavam a perdê-las.” Embora as suas reivindicações sejam legítimas e legais, na ausência de respostas do Estado, as comunidades recorreram à recuperação através de meios de facto que levaram a confrontos violentos. Esses conflitos derivam de choques de interesses conflitantes, adversos e incompatíveis entre povos indígenas e não indígenas.

“Essas recuperações se tornam muito violentas, temos muitos riscos”, diz Sibar. O líder Broran não consegue esquecer o assassinato de seu companheiro Jhery Rivera, em fevereiro de 2020, cujo caso ainda não foi solucionado. “Foi muito violento, tiraram a gente de uma das fazendas que a gente acompanhava, tivemos que sair, praticamente fugindo, quase nos lincharam”. Essa forma de recuperação deixou, de fato, dois indígenas assassinados por colonos, proprietários de terras ou afetados por essas recuperações.

Pablo Sibar é um dos indígenas que lidera a recuperação de terras. Por esta razão recebeu pelo menos quatro ameaças de morte. Foto: Abelardo Fonseca

A perspectiva dos povos indígenas: o justo

Na Costa Rica encontramos uma disputa entre dois atores com um objetivo antagônico: manter o território para explorá-lo economicamente ou recuperá-lo para garantir a vida das próximas gerações. Este conflito reside em duas visões incompatíveis sobre a propriedade da terra: enquanto os colonos querem trabalhar a pecuária e a monocultura, os indígenas querem praticar relações harmoniosas com a natureza. Pior ainda, tendo esgotado as vias legais, os povos indígenas não têm outra escolha senão recorrer à ocupação de facto, que tem consequências de violência e morte.

É assim que Pablo Sibar explica em entrevista à Deutsche Welle : “Faço parte da recuperação. Aqui somos 16 famílias compostas por 100 pessoas que não tinham nada, não tínhamos onde plantar. Nos instalamos na fazenda e fizemos uma declaração dizendo que a fazenda foi recuperada de fato, e que quem usurpou a terra teve um prazo razoável para retirar tudo que lhe pertencia e que a terra nos pertencia.”

Élides Rivera:“Em nenhum momento estamos infringindo a lei: estamos exigindo um direito que nos corresponde como pessoas e como mulheres”.

“Em nenhum momento estamos infringindo a lei: estamos exigindo um direito que nos corresponde como pessoas e como mulheres”.

O testemunho de Elides Rivera, líder do povo Bröran, também apela à paz e explica as recuperações de facto devidas ao justo direito: “Gostaria que na minha cidade tivéssemos terra suficiente para viver com os nossos filhos, onde possamos produzir nossa alimentação, onde vivemos sem tanta violência. Aproveitar o espaço, viver sem medo. Em nenhum momento estamos infringindo a lei: estamos exigindo um direito que nos corresponde como pessoas e como mulheres”.

Por sua vez, a Universidade Central da Costa Rica destacou a persistente violação dos direitos dos povos indígenas do país: “A grave situação nos territórios indígenas é injusta, insuportável e insustentável. Além disso, demonstra uma violação sistemática dos direitos fundamentais das pessoas destas comunidades, a inação e ineficácia do Estado e a complacência com os agressores. Tudo isso acarreta responsabilidades muito sérias que devem ser assumidas por toda a sociedade costarriquenha, mas especialmente pelas autoridades políticas, técnicas, legislativas, executivas e judiciais”.

O ativista indígena Sergio Rojas, morto a tiros em 2019, tornou-se um emblema da recuperação de terras na Costa Rica. Foto: Laura Rodríguez Rodríguez

Direito e ocupações de fato

Enquanto os colonos vêem os indígenas como preguiçosos, preguiçosos e dificultadores do desenvolvimento, o povo vê os mestiços como usurpadores, invasores e destruidores da Mãe Terra. Esta disputa por interesses incompatíveis tem gerado níveis extremos de violência, que são mais graves devido à ineficácia dos funcionários, à inação do Estado e às falhas de gestão na distribuição de recursos escassos. Escusado será dizer que a violência afeta a paz e a harmonia da população.

A falta de resposta legal e a ausência de respostas estatais leva a que os atores envolvidos resolvam o conflito por meio dos seus próprios métodos, que na maioria dos casos se tornam violentos. Consequentemente, como a inação do Poder Judiciário é funcional aos interesses dos não indígenas, as comunidades indígenas optam pelas recuperações de facto como ação vingativa. O papel do Estado, das ONG e das organizações de direitos humanos é fundamental para alcançar a paz nos territórios indígenas da Costa Rica. Por sua vez, as mulheres indígenas desempenham um papel extremamente importante no diálogo, nos acordos e na segurança nos seus territórios: sabem que um ambiente de paz é o maior legado que podem deixar aos seus filhos e à natureza.

Larry Salomon Pedro

Larry Salomon Pedro é indígena Mayangna da Nicarágua, advogado especializado em Direitos Indígenas, professor universitário e mestre em Resolução de Conflitos, Paz e Desenvolvimento.