Embora a reforma represente um avanço para o marco regulatório nacional, as modificações chegam 30 anos depois e levantam dúvidas sobre sua possível aplicação. O principal desafio gira em torno da falta de formação financeira e administrativa para que as pessoas possam exercer a sua autonomia. Além disso, a reforma ainda não garante que a consulta prévia cumpra as normas internacionais e deixa de ser um simples ato administrativo como acontece atualmente. Na verdade, existe o risco da reforma continuar a ser um reconhecimento simbólico, sem mudanças estruturais profundas nas políticas econômicas que afetam as pessoas.
A reforma constitucional de 2024 sobre os povos indígenas e afro-mexicanos, no que diz respeito ao seu reconhecimento como sujeitos coletivos de direito público, chegou com 30 anos de atraso: foi uma reivindicação do movimento indígena impulsionado pelos Acordos de San Andrés de 1996. Neste período de tempo, as condições de reconhecimento dos direitos e a sua implementação mudaram radicalmente e são mais adversas para os povos indígenas e seus povos; e agora também para os afro-mexicanos.
A reforma estabelece vários aspectos: sujeitos de direito público com personalidade jurídica e bens próprios; autonomia para gerir recursos públicos; direito à Consulta Prévia, Livre e Informada em projetos que afetem seus territórios; a proteção do patrimônio cultural e territorial. A reforma acrescenta uma seção sobre os direitos específicos dos povos afro-mexicanos e outra especial para as mulheres indígenas e afro-americanas. Embora muitos destes direitos já tenham estatuto internacional, foram agora incorporados no quadro jurídico mexicano (positivista e estatista).
O processo de construção da reforma foi complexo, liderado pelo Instituto Nacional do Índio (INPI) e incluiu consultas a milhares de autoridades comunitárias. No entanto, não cumpriu os padrões de uma consulta no âmbito do mecanismo especializado. Consequentemente, podemos dizer que se tratou antes de uma série de fóruns onde se tomaram nota de opiniões.
Desafios e críticas à reforma constitucional
O reconhecimento dos povos indígenas e afro-mexicanos como sujeitos de direito público com personalidade jurídica e bens próprios levanta uma série de desafios e críticas que devem ser enfrentados para evitar que permaneçam num quadro jurídico sem impacto real nas suas condições de vida.
Em primeiro lugar, embora o estatuto de “sujeito de direito público” conceda às comunidades um maior controle sobre a gestão dos seus recursos, incluindo a possibilidade de receber e gerir diretamente fundos públicos, isso não garante automaticamente o seu empoderamento. A falta de capacidades administrativas, de infraestruturas e de acesso a formação adequada pode limitar gravemente a sua capacidade de exercer este direito de forma eficaz. Sem o apoio do Estado na formação em gestão financeira e administração pública, a autonomia prometida poderia permanecer vazia e, no pior dos casos, gerar problemas de má gestão ou dependência de atores externos.
Embora a reforma dê um passo importante no sentido da formalização dos direitos coletivos, existe o risco de este reconhecimento ser utilizado como recurso retórico sem um compromisso real do Estado.
Existe o risco de que este reconhecimento seja utilizado como recurso retórico sem um compromisso real do Estado.
Outra crítica central é a potencial instrumentalização política do reconhecimento da personalidade jurídica como sujeito coletivo de direito público. Embora a reforma dê um passo importante no sentido da formalização dos direitos coletivos, existe o risco de que este reconhecimento seja utilizado como um recurso retórico sem um compromisso real do Estado em fornecer às comunidades as ferramentas necessárias para exercer esses direitos. Houve vários casos em que o reconhecimento legal não se traduziu numa mudança nas suas vidas, levando à frustração e à desconfiança no governo.
Os ativos próprios são outro componente fundamental, mas também complexo. O fato de as comunidades poderem gerir o seu patrimônio de forma autônoma implica que tenham a capacidade de tomar decisões sobre o uso das suas terras, recursos naturais e culturais. No entanto, na prática, isto pode ser limitado por desigualdades estruturais que tornaram os territórios indígenas precários devido à pressão de intervenientes externos que procuram explorar os seus recursos para projetos extrativistas ou de infraestruturas. A isso se soma a presença do crime organizado. Sem mecanismos claros para proteger os ativos, o reconhecimento da sua gestão autônoma poderia ser mais simbólico do que real.
O risco das consultas continuarem a ser realizadas como antes
A Consulta Prévia, Livre e Informada é um dos pilares mais importantes da reforma constitucional, pois visa garantir que as comunidades indígenas e afro-mexicanas participem ativamente nas decisões que afetam os seus territórios e modos de vida. No entanto, apesar da sua relevância, este mecanismo apresenta múltiplos desafios críticos que podem limitar a sua eficácia e, em alguns casos, perpetuar as desigualdades existentes. Por exemplo, que os protocolos sejam elaborados pelo Estado sem a participação do povo, como foi o caso das supostas consultas sobre o erroneamente denominado Trem Maia.
O principal risco é que as consultas continuem a ser realizadas como têm sido até agora, ou seja, que sejam meramente formais e não cumpram os padrões internacionais estabelecidos na Convenção 169 da OIT e no mecanismo de peritos. Em muitas ocasiões, as consultas prévias realizadas no contexto dos megaprojetos foram realizadas de forma superficial, sem garantir que as comunidades compreendessem verdadeiramente o âmbito dos projectos e os seus impactos a longo prazo. Isto tem gerado desconfiança em relação ao Estado e aos promotores dos projetos, o que enfraquece a finalidade do mecanismo e transforma a consulta num procedimento, em vez de um verdadeiro exercício de autodeterminação.
As empresas e o Estado têm muitas vezes mais recursos e acesso à informação técnica, o que coloca as comunidades em desvantagem na negociação ou compreensão do impacto total dos projectos.
As empresas e o Estado normalmente têm mais recursos e acesso à informação técnica, o que coloca as comunidades em desvantagem.
Um segundo risco é a falta de consentimento real por parte das comunidades. Embora a reforma estabeleça o direito à consulta, nem sempre garante que as comunidades tenham a opção de rejeitar projetos que considerem prejudiciais. Em muitos casos, a consulta é utilizada como mecanismo de legitimação de decisões já tomadas com muita antecedência pelo Estado ou pelas empresas, o que transforma as comunidades em simples observadores de um processo que não respeita necessariamente a sua vontade. Isto levanta uma contradição fundamental entre o direito à autodeterminação que a reforma promove e a prática real de como estes processos são realizados.
Além disso, o diferencial de poder entre as comunidades e os atores econômicos é outro obstáculo significativo. As empresas e o Estado têm muitas vezes mais recursos e acesso à informação técnica, o que coloca as comunidades em desvantagem na negociação ou compreensão do impacto total dos projetos. Sem apoio adequado, como intérpretes, aconselhamento jurídico ou advogados especializados, as comunidades ficam expostas a pressões externas que podem influenciar as suas decisões. Esta falta de equilíbrio nas consultas gera um cenário de desigualdade, onde os interesses econômicos tendem a prevalecer sobre os direitos territoriais e culturais das comunidades.
Da mesma forma, são recorrentes as críticas sobre a falta de monitoramento e cumprimento efetivo dos acordos alcançados durante as consultas. Mesmo quando as comunidades conseguem influenciar as decisões, muitas vezes os compromissos estabelecidos não são cumpridos, o que perpetua o sentimento de abandono e desconfiança. Sem mecanismos claros de responsabilização e supervisão independente, a consulta prévia torna-se um processo sem consequências reais para as empresas ou para o governo, reforçando a percepção de que se trata de uma formalidade e não de um verdadeiro exercício de justiça.
O desafio de garantir que o pluralismo jurídico não permaneça no nível simbólico
A reforma estabelece também a proteção do patrimônio cultural e territorial das comunidades, reconhecendo os seus sistemas regulatórios e a pluralidade jurídica. No entanto, este reconhecimento legal coloca vários desafios que devem ser enfrentados para evitar que estes avanços permaneçam num nível simbólico. Em primeiro lugar, não está claro como é que estes sistemas irão interagir eficazmente com o sistema jurídico nacional. Mais ainda quando fica claro que o pluralismo jurídico constitucionalmente reconhecido no México é unitário e não igualitário. Não são os povos indígenas que estabelecem as suas regras de relacionamento com o Estado, é o Estado através do direito positivo mexicano que as estabelece.
A coexistência de dois sistemas jurídicos pode gerar tensões e conflitos de jurisdição, especialmente em contextos onde os direitos territoriais e os interesses econômicos colidem. Sem mecanismos claros para harmonizar as leis indígenas com as nacionais, este reconhecimento corre o risco de permanecer uma declaração sem impacto prático significativo. Além disso, a justiça intercultural exige uma formação aprofundada e empenhada dos operadores judiciais, desde juízes a advogados e defensores públicos, o que não foi desenvolvido com clareza suficiente na reforma.
No que diz respeito ao reforço da coesão social, é importante reconhecer que a pluralidade jurídica pode, em alguns casos, exacerbar as desigualdades dentro das comunidades. Nem todas as comunidades têm a mesma capacidade organizacional ou recursos, o que poderia gerar conflitos internos sobre a interpretação e aplicação dos seus próprios sistemas regulatórios. A reforma, embora permita um maior controle sobre os territórios, deve ser acompanhada de políticas que promovam a equidade dentro das próprias comunidades para evitar o aprofundamento das assimetrias existentes.
Uma reforma que só poderia ser simbólica
Em relação à justiça climática, o reconhecimento dos direitos territoriais e culturais das comunidades indígenas é um componente chave para a proteção ambiental, dado que estas comunidades têm sido historicamente guardiãs da biodiversidade. No entanto, esta abordagem enfrenta tensões com os interesses econômicos do Estado e das empresas extrativistas, que continuam a dar prioridade aos megaprojectos sem o consentimento real das comunidades afetadas. A justiça climática só será alcançável se a voz e o conhecimento tradicional das comunidades indígenas forem respeitados na tomada de decisões sobre os seus territórios, o que exige uma mudança profunda nas políticas de desenvolvimento.
No que diz respeito à equidade de gênero, a reforma inclui disposições para a participação das mulheres indígenas e afro-mexicanas na tomada de decisões. No entanto, estes progressos são insuficientes se não forem acompanhados de medidas concretas para garantir que estas disposições sejam implementadas na prática. Nas comunidades, as mulheres enfrentam barreiras tanto nos seus contextos culturais como na sua relação com o Estado, exigindo políticas específicas de empoderamento e apoio para garantir que a sua participação não seja simplesmente um ideal no papel. E isso só será possível com a participação dos povos indígenas como sistemas complexos.
Historicamente, o Estado mexicano concedeu reconhecimento formal aos direitos dos povos indígenas, mas sem se comprometer a transformar as dinâmicas de poder que perpetuam a exclusão e a marginalização.
Sem uma mudança real nas políticas econômicas que priorizem o extrativismo e os interesses comerciais, o impacto da reforma poderá ser limitado.
Um dos problemas mais notáveis é a falta de clareza sobre como será garantida a atribuição de recursos orçamentais específicos para implementar os direitos reconhecidos. Sem financiamento adequado, os mecanismos de Consulta Livre, Prévia e Informada poderiam tornar-se simples formalidades, sem verdadeiro poder de decisão para as comunidades. Além disso, a autonomia prometida poderá ser anulada se as comunidades não tiverem os recursos e infra-estruturas necessárias para gerir os seus próprios projectos.
Além disso, a reforma não aborda de forma abrangente as profundas desigualdades estruturais nas comunidades indígenas e afro-mexicanas. Algumas comunidades, mais bem organizadas e com mais acesso aos recursos, poderão beneficiar rapidamente dos novos direitos, enquanto outras, mais marginalizadas, continuarão a ser excluídas. Isto poderia perpetuar disparidades internas e limitar o impacto equitativo da reforma.
Finalmente, existe o risco de a reforma continuar a ser um reconhecimento simbólico ou retórico sem mudanças estruturais profundas. Historicamente, o Estado mexicano concedeu reconhecimento formal aos direitos dos povos indígenas, mas sem se comprometer a transformar as dinâmicas de poder que perpetuam a exclusão e a marginalização. Sem uma mudança real nas políticas econômicas que priorizem o extrativismo e os interesses comerciais, o impacto da reforma poderá ser limitado.
Elisa Cruz Rueda é professora pesquisadora em tempo integral por oposição. Escola de Administração e Autodesenvolvimento Indígena da Universidade Autônoma de Chiapas. Consultora IWGIA.