O Brasil está enfrentando eventos climáticos extremos sem precedentes, como secas severas e incêndios florestais. Enquanto isso, o governo federal revisa seu Plano Nacional de Adaptação, uma oportunidade para incluir as perspectivas indígenas nas políticas públicas e mudar o cenário futuro. Demorou mais de 500 anos para que os povos indígenas tivessem o seu próprio ministério: a questão é quantos anos mais serão necessários para que a sua visão de mundo seja incorporada nas políticas públicas.
No seu último relatório, o Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC) observou que, embora as alterações climáticas sejam um fenômeno global, alguns grupos são mais afetados pelos seus impactos. O debate sobre justiça climática levanta preocupações de que os grupos que suportam um fardo desproporcional são muitas vezes aqueles que menos contribuíram para a crise climática. Embora os países do Norte Global sejam historicamente responsáveis pelo cenário atual, o Brasil está entre os dez maiores emissores de gases de efeito estufa.
A nível nacional e regional, as comunidades indígenas desempenham um papel essencial no esforço de combate à crise climática. Reconhecidos pela sua relação intrínseca com o meio ambiente e seus territórios, os conhecimentos ancestrais têm contribuído para manter os ciclos naturais e o clima equilibrados. Na Amazônia, as Terras Indígenas apresentam baixas taxas de desmatamento (<2%), o que torna essas áreas críticas para impedir a perda florestal e manter o carbono no solo. Além disso, a temperatura média nos territórios indígenas da Amazônia brasileira é 2 graus mais baixa e a evapotranspiração pode ser até três vezes maior do que nas pastagens e monoculturas vizinhas.
Embora os povos indígenas sejam um grupo crucial na contenção da crise climática, estão mais expostos aos seus impactos devido à sua interdependência com os recursos naturais. Com a mudança no padrão de chuvas, aumenta o risco de perda das colheitas, resultando em insegurança alimentar. Nos anos anteriores, comunidades inteiras ficaram isoladas devido à grave seca na Amazônia, limitando o seu acesso a bens e recursos essenciais. Da mesma forma, o racismo estrutural acrescenta outra barreira que exclui as comunidades indígenas dos processos de tomada de decisão onde são definidas soluções climáticas, como a preparação de Planos Nacionais de Adaptação (PAN).
Plano Nacional de Adaptação do Brasil
Em 2016, o Brasil lançou a primeira versão do seu Plano Nacional de Adaptação. Naquela época, o recém-formado Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) participou de diversas reuniões para apresentar suas contribuições para esta nova política pública. Contudo, o formato do PAN brasileiro incluiu os povos indígenas no setor “População e Povos Vulneráveis”. O CIMC, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e outras organizações da sociedade civil, como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), contribuíram para a concepção do subcapítulo “População e Povos Vulneráveis”, seguindo as limitações então impostas.
O atual momento político tem demonstrado maior disposição para incluir os povos indígenas no mesmo nível de outros setores na revisão do PNA brasileiro. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) está entre outros 25 ministérios que estão redesenhando o processo do PNA. Sob a liderança da Ministra Sonia Guajajara, uma líder indígena de renome internacional, o MPI reuniu organizações e representantes indígenas para moldar o setor dos povos indígenas.
Sob a liderança da Ministra Sonia Guajajara, uma líder indígena de renome internacional, o Ministério dos Povos Indígenas reuniu organizações e representantes indígenas para moldar o setor dos povos indígenas.
Sob a liderança da Ministra Sonia Guajajara, o Ministério dos Povos Indígenas reuniu organizações indígenas para moldar o setor dos povos indígenas.
Porém, mesmo com a participação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no processo, alguns representantes indígenas tiveram dificuldade em contribuir, uma vez que o PAN tinha um cronograma rígido e sua metodologia restringia a participação de muitos.
Espera-se que o novo Plano Nacional de Adaptação do Brasil, a ser publicado no final de 2024, tenha feito progressos consideráveis em conteúdo e participação; contudo, as expectativas das organizações indígenas podem não ser atendidas devido ao formato de participação que lhes é concedido. Menos de 30 representantes indígenas puderam participar do workshop que teve como objetivo integrar suas perspectivas sobre esta política climática. Embora aqueles que não puderam estar presentes tenham tido a oportunidade de submeter a sua contribuição por meio de uma plataforma aberta, a maioria das comunidades carece de conectividade, o que pode restringir a sua participação no processo.
Estratégias autônomas dos povos indígenas
Muito antes do governo brasileiro ou organizações internacionais estabelecerem a necessidade de construção de estratégias nacionais de adaptação, os povos indígenas se organizaram de diversas formas para combater os impactos das mudanças climáticas. O Conselho Indígena de Roraima (CIR) é um modelo de como os povos indígenas se destacam ao combinar seu conhecimento ancestral com a ciência não indígena.
Localizada no Nordeste da Amazônia brasileira, a etnia Serra da Lua abrange três territórios indígenas e serviu de estudo de caso para ações sobre mudanças climáticas. No final da década de 1990 e início da década de 2000, três eventos climáticos extremos atingiram duramente estas comunidades. Primeiro, uma seca severa seguida de incêndios florestais devastou uma parte significativa da vegetação nativa nas aldeias indígenas. Em 2011, o rio mais importante de Roraima transbordou, batendo recordes históricos.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) é um modelo de como os povos indígenas se destacam ao combinar seu conhecimento ancestral com a ciência não indígena.
Diante dessas situações, o CIR elaborou um estudo de caso sobre como os povos indígenas percebem as mudanças climáticas e quais são os seus mecanismos para combatê-las. Após três anos de intenso trabalho, a publicação Amazad Pana’Adinhan apresenta o contexto socioambiental desses territórios e seu calendário de acordo com os ciclos naturais. O estudo termina com um capítulo dedicado a apresentar os seus planos para enfrentar as consequências das alterações climáticas: mapearam os impactos mais frequentes, como e quando promoverão ações climáticas específicas e responsabilidades partilhadas entre a comunidade e os seus parceiros.
Pela sua importância, essa experiência foi citada no primeiro Plano Nacional de Adaptação do Brasil como exemplo de como os povos indígenas podem promover ações de adaptação. Em 2023, durante a 58ª sessão do Órgão Subsidiário de Aconselhamento Científico e Tecnológico da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, este estudo ressurgiu como um modelo chave.
Comentários finais
O atual Plano Nacional de Adaptação do Brasil mostra progressos significativos em comparação com sua versão anterior. Inclui os povos indígenas no mesmo nível que outros setores e convida as organizações representativas indígenas a fazerem parte do processo. A sua duração, prevista para funcionar até 2035, também demonstra a vontade política de incorporar os seus objetivos como uma política de estado relevante.
Contudo, ainda carrega velhos vícios na forma de construção de políticas públicas, o que tem limitado o comprometimento pleno. As questões climáticas são complexas e poucos estão familiarizados com elas. Neste sentido, para alcançar a participação efetiva da sociedade civil, é essencial criar uma base sólida que permita uma colaboração frutífera. Embora o Ministério dos Povos Indígenas liderasse legitimamente o processo, as organizações indígenas de base tiveram pouco espaço para contribuir diretamente com suas iniciativas no terreno, como a apresentada pelo Conselho Indígena de Roraima.
O atual ciclo político demonstra apoio a uma agenda progressista, mas mudanças reais nas políticas públicas ainda estão muito distantes. Demorou mais de 500 anos para que os povos indígenas no Brasil tivessem seu próprio ministério. A questão é quantos mais serão necessários para descolonizar as políticas climáticas.
Martha Fellows é pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM) e mestre em estudos latino-americanos pela Universidade de Salamanca. É especialista em políticas públicas socioambientais e, desde 2014, atua como aliada dos povos indígenas, focando seu trabalho principalmente nas mudanças climáticas.
Sineia do Vale é coordenadora do departamento de meio ambiente do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e foi recentemente nomeada copresidente para América Latina e Caribe do Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (IIPFCC), conhecido como Fórum Indígena.