Embora o governo de Dina Boluarte tenha promovido o sucesso do mandato do Peru como presidente do Fórum de Cooperação Económica Ásia-Pacífico, não consegue esconder o descontentamento social que se manifesta nas ruas. A crescente insegurança, a falta de medidas eficazes para resolver os problemas estruturais do país e a cegueira face às necessidades da população contradizem a posição presidencial de “tudo está sob controle”. Neste quadro, o caso de quatro jovens indígenas condenados por protestar é um claro exemplo das injustiças vividas num país que tenta projetar uma imagem positiva.
O Fórum de Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC) é uma plataforma que reúne 21 economias da região Ásia-Pacífico, considerada a mais dinâmica do mundo. Fundada em 1989, a APEC realiza reuniões anuais com o objetivo de promover o comércio, o investimento e o desenvolvimento sustentável. Este ano, o Peru foi anfitrião pela terceira vez e organizou eventos em diversas cidades do país: Arequipa sediou as reuniões dos Ministros do Comércio e da Mulher; Urubamba, em Cusco, acolheu as reuniões de ministros do turismo e altos funcionários das finanças; Pucallpa sediou as sessões para pequenas e médias empresas; Trujillo recebeu a Semana de Segurança Alimentar; e em Lima culminou com a cimeira de líderes e chefes de estado.
No evento principal, líderes de 21 países, juntamente com representantes de organizações internacionais, discutiram o crescimento inclusivo, a transição para uma economia formal e sustentável e a digitalização como motor do desenvolvimento. Segundo o governo peruano, a APEC representa uma oportunidade fundamental para fortalecer os laços com as economias globais e posicionar o país em igualdade de condições com os seus parceiros internacionais. Da mesma forma, conseguiu acordos fitossanitários que abriram o mercado chinês aos produtos peruanos como castanhas e frutas congeladas. Uma reivindicação do setor agroexportador.
No entanto, as conquistas destacadas pelo governo peruano não conseguiram dissipar o difícil contexto político e social que o país atravessa. A presidente, Dina Boluarte, enfrenta forte desaprovação, agravada por uma crescente crise de insegurança e por decisões governamentais controversas. Uma das mais controversas foi permitir a entrada de tropas norteamericanas sob o pretexto de colaborar na segurança, o que muitos analistas consideram uma ameaça à soberania nacional.
A desconexão do presidente
O governo de Dina Boluarte parece surdo às necessidades dos peruanos e cada vez mais distante da sua realidade. Embora a presidente insista que “a situação está sob controle”, as sondagens mostram que a insatisfação generalizada e a insegurança são percebidas pelos cidadãos como uma ameaça constante. A recente decisão de permitir a entrada de tropas dos EUA para “colaborar em questões de segurança” inflamou ainda mais os ânimos. Muitos estão preocupados com o fato de esta medida afetar a soberania nacional e não resolver o problema subjacente: a decisão parece mais destinada a agradar interesses externos do que a proteger os seus cidadãos.
Esta decisão soma-se à ordem governamental de “disparar a greve” anunciada pelos transportadores, o que reflete uma abordagem repressiva aos conflitos sociais. Além disso, a insegurança impactou o dia a dia dos peruanos, obrigando ao cancelamento de shows, à interrupção de voos e à restrição de atividades culturais. Neste clima de tensão, a iniciativa Cidadã da APEC, que buscava envolver a população nas discussões globais do fórum, parece ter se diluído. Embora tenham sido planeadas actividades culturais, seminários e feiras, estas não foram plenamente realizadas devido à instabilidade política e social.
A desconexão da presidente ficou evidente durante cerimônia com mulheres agrícolas quando afirmou: “Com 10 solcitos fazemos sopa, prato principal e até sobremesa, nós inventamos, nós mulheres somos assim”. Porém, a realidade do Palácio do Governo contrasta drasticamente com o seu discurso: até outubro foram desembolsados 1.394.841,49 soles para alimentação da sede presidencial, o que equivale a um gasto médio de 4.000 soles por dia. Soma-se a isto a contratação de uma nutricionista exclusiva para o gabinete presidencial, refletindo um evidente desequilíbrio entre o discurso oficial e a utilização de recursos do Estado.
Um megaporto chinês no Peru
No âmbito da Semana dos Líderes Econômicos do Fórum APEC e sob o lema “De Chancay a Xangai”, o Ministério dos Transportes e Comunicações do Peru inaugurou o Terminal Portuário Multiuso de Chancay. Esta infraestrutura está localizada a 75 quilómetros de Lima e representou um mega investimento da estatal chinesa Cosco Shipping. Esta primeira etapa conta com quatro cais com comprimento total de 1.500 metros e profundidade de 18 metros, além de capacidade para receber os maiores navios do mundo com carga plena. O investimento necessário ultrapassou US$ 1,4 bilhão.
A inauguração do Terminal Portuário esconde questões cruciais que devem ser analisadas. Por um lado, a desigualdade estrutural que persiste entre os mercados peruanos e os de outros países membros da APEC implica barreiras críticas no acesso aos mercados internacionais e dificulta a concorrência equitativa no comércio global, limitando a diversificação produtiva e o valor acrescentado das suas exportações. Por outro lado, muitos produtores peruanos, especialmente os pequenos e médios, carecem das ferramentas e conexões necessárias para beneficiar plenamente deste tipo de infraestrutura.
Além disso, a construção e operação de um projeto desta envergadura não está isenta de custos ambientais, como o impacto nos ecossistemas marinhos, a alteração dos habitats costeiros, a modificação das correntes oceânicas e a poluição do mar devido a derrames e resíduos industriais. Estas consequências, geralmente minimizadas, afetam diretamente as comunidades costeiras e a biodiversidade marinha, vitais para a pesca e a subsistência de muitas famílias peruanas.
A perseguição aos povos indígenas
Embora o governo pretenda mostrar uma imagem positiva à comunidade internacional, a perseguição aos Povos Indígenas permanece latente. Um claro exemplo desta realidade é o caso de Richard Camala, Ferdinan Huacanqui, Redy Huaman e Joel Hivallanca, habitantes da comunidade Cuyo Grande em Pisaq, Cusco, que foram detidos injustamente em janeiro de 2023 por exercerem o seu direito de protestar contra o governo de Dina Boluarte e o Congresso. Através de um processo precipitado e com rigor desproporcional, foram condenados a sete anos de prisão e ao pagamento de uma exorbitante reparação civil, o que demonstra um tratamento punitivo que criminaliza o legítimo direito à dissidência.
Esta sentença contrasta dolorosamente com a lentidão e a impunidade que caracterizam os processos judiciais em casos de corrupção, crimes graves e até homicídios. Embora os líderes indígenas sejam prontamente perseguidos e presos, aqueles que saqueiam o tesouro público ou cometem crimes hediondos enfrentam anos de atrasos no sistema judicial. Esta disparidade na aplicação da justiça não só reflete a discriminação estrutural, mas também perpetua a invisibilidade e o desprezo pelas comunidades indígenas, que só são tidas em conta quando são rentáveis para o discurso oficial ou para o turismo.
A humilhação e a marginalização são feridas que se perpetuam nas famílias de Cuyo Grande e em tantas outras comunidades. Os Povos Nativos, apresentados como cartões postais vivos para promover uma identidade cultural em benefício de poucos, são relegados e estigmatizados quando exigem direitos ou levantam a voz. Convertidos em “terroristas” ou “ignorantes” por defenderem a sua dignidade, enfrentam uma narrativa estatal que os valoriza apenas quando permanecem calados, mas os reprime quando os incomodam. É hora de quebrar este ciclo de injustiça: o protesto não é crime e os Povos Indígenas não devem ser tratados como meros símbolos decorativos de uma identidade seletiva e exclusiva.
O que não pode ser escondido
O Peru precisa de uma liderança que priorize o diálogo e a ação preventiva em vez de respostas repressivas e medidas questionáveis. Neste contexto, o sucesso da APEC 2024 como evento internacional não será suficiente para esconder as deficiências de um governo que parece surdo às exigências da sua população, especialmente as dos Povos Nativos.
O país precisa de políticas de prevenção e justiça, e não de intervenções estrangeiras ou de respostas repressivas que apenas aprofundam a agitação dos cidadãos. Um governo que não ouve o seu povo está condenado a perder a sua confiança e, com ela, a legitimidade que nunca teve.
Por fim, é fundamental que o Peru se reconheça e se valorize numa perspectiva horizontal, integrando todas as suas diversidades culturais, como a visão de mundo andina e amazônica. Este reconhecimento deve ser acompanhado de políticas públicas que reivindiquem os direitos legítimos dos Povos Indígenas, respeitando seus territórios, culturas, visões de mundo e lideranças. Só assim será possível construir um desenvolvimento sustentável, inclusivo e acessível, que garanta oportunidades iguais a todos os peruanos.
Yaymy Mamani Ccallaccasi é tradutora e intérprete quíchua do Ministério da Cultura do Peru, Guia Oficial de Turismo e bolsista do Programa de Jornalismo Indígena e Ambiental (IWGIA/UPSA/ORE). Além disso, é ativista na divulgação cultural, nos direitos dos Povos Indígenas e na proteção ambiental.
Helen Quiñones Loaiza é educadora intercultural bilíngue, tradutora e intérprete de língua nativa e bolsista do Programa de Jornalismo Indígena e Ambiental (IWGIA/UPSA/ORE). Além disso, é ativista cultural, social e especialista em gênero.