Reformas no México: mudanças na forma que não resolvem os problemas estruturais dos povos indígenas e afrodescendentes

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Foto: Marvin Bautista | Jornal Sul

Nas áreas rurais, as comunidades indígenas e afrodescendentes continuam a sofrer com o avanço do crime organizado. Neste contexto, o mandato de seis anos de Andrés Manuel López Obrador implementou uma série de reformas que não conseguiram melhorar as bases materiais do povo. Infelizmente, a Presidente eleita, Claudia Sheinbaum, apoia a presença militar nas regiões e a política de segurança nacional do Presidente cessante.

No México, acabamos de passar por um processo eleitoral através do qual temos a primeira mulher Presidente na história do país. Sem dúvida é para ser comemorado, mas esta alegria não durou muito (apenas um momento) devido aos sinais de continuidade de uma política neoliberal, disfarçada de pressão pelos direitos sociais. Na realidade, a continuidade destas políticas mina o princípio da progressividade dos direitos internacionalmente reconhecidos e prejudica os cidadãos em geral e os povos indígenas em particular.

Como já se sabe, o executivo federal representado pelo Presidente da República, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), tem-se dedicado a desqualificar aqueles que ousam dizer-lhe: “Senhor Presidente, as normas internacionais de consulta com povos indígenas.” O que é agravado pela presença do crime organizado em diferentes regiões do país, especialmente nas áreas rurais onde vive a população indígena e não indígena. Para alguns, o crime organizado já é um crime autorizado. A falta de obrigação legal (e mesmo moral), de experiência e de diligência para impedir o êxodo de comunidades inteiras levanta dúvidas sobre a seriedade das ações que o governo federal mexicano concebe e implementa para salvaguardar os territórios indígenas e rurais. Será que para AMLO e o seu governo existem poucas comunidades forçadas a ser deslocadas e não são representativas dos milhões de mexicanos? Neste caso, a vida de poucos não vale a pena se os restantes não vivem o pesadelo do crime organizado com a tolerância das autoridades?

Até o momento, a presidente eleita, Claudia Sheinbaum, apoia as políticas de López Obrador que não funcionaram na luta contra o narcotráfico. Foto: Cláudia Sheinbaum

Reformas que não ajudam

As reformas levadas a cabo pelo governo cessante de seis anos regulamentaram os direitos dos povos indígenas e afro. No entanto, não aumentaram o alcance do seu cumprimento, mas antes forçaram-nos a aderir ao pluralismo unitário e desigual pré-existente, que está institucionalizado no artigo 2.º da Constituição (sancionada em 2001 e reformada em 2019). Além disso, as reformas propostas em geral e, especialmente, em matéria indígena contrariam o bloco constitucional dos Direitos Humanos aprovado em 2011. Estas são algumas das reformas mais relevantes:

1. A proposta de reforma do artigo 2 da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos para o reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos de direito público, recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados;

2. A reforma da Lei Sanitária da Obstetrícia Tradicional e da Obstetrícia Indígena com a correspondente Política Nacional de Medicina Tradicional e Obstetrícia;

3. O acordo pelo qual é emitido o Catálogo Nacional dos Povos e Comunidades Indígenas e Afro-mexicanas;

Além do exposto, o Conselho Nacional dos Povos Indígenas (entidade criada no âmbito do Governo Federal denominada Instituto Nacional dos Povos Indígenas) elaborou uma proposta de reforma judicial onde o tema central é que a integração do Poder Judiciário Federal deve incorporar o princípios de multiculturalismo, interculturalidade, pluralismo jurídico e igualdade entre homens e mulheres, mas também aponta cotas indígenas para ocupar cargos como operadores de justiça. A seguir abordamos os pontos mais relevantes.

As reformas realizadas durante o mandato de seis anos de AMLO regulamentaram os direitos indígenas e afroamericanos, reforçando o pluralismo jurídico unitário/unilateral sem aumentar o nível de conformidade. Foto: Governo do México

Artigo 2 da Constituição Mexicana

Recordemos que em Agosto de 2001, havia reformado o artigo 2 da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos para o reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos de direito público. Nessa modificação, o critério da “consciência de ser” foi estabelecido como mecanismo de “autoatribuição” para a autodenominação dos povos e pessoas indígenas.

Porém, na atual reforma aprovada este ano pela Câmara dos Deputados, foi eliminado o parágrafo que indicava a consciência de ser indígena como critério de reconhecimento dos povos e povos indígenas. Desta forma, restou o seguinte parágrafo: “Para o reconhecimento dos povos e comunidades indígenas, além dos princípios gerais estabelecidos nos parágrafos anteriores deste artigo, deverão ser levados em consideração critérios etnolinguísticos, assentamento físico e autoatribuição”.

As reformas legais e constitucionais pró-indígenas ou afro não abordam as bases estruturais da desigualdade: racismo, discriminação, paternalismo, assimilacionismo e racialização.

As reformas legais e constitucionais pró-indígenas ou afro não abordam as bases estruturais da desigualdade.

Consequentemente, foi acrescentada a condição de reconhecimento dos sujeitos de direito público com personalidade jurídica e bens próprios: “Os povos e comunidades indígenas são reconhecidos como sujeitos de direito público com personalidade jurídica e bens próprios”. Isto é louvável porque abre caminho para materializar a demanda (desde o levante zapatista e os diálogos de San Andrés) pelo reconhecimento de um quarto nível de governo, além dos níveis federal, estadual e municipal. Porém, o artigo 115 (que se refere à estrutura do Estado) não é reformado, mas apenas o artigo 2º da Constituição. O que aconteceu? Certamente os representantes do status quo opunham-se à partilha do poder com os povos indígenas.

Entretanto, no município de Chicomuselo (Chiapas), as comunidades se mobilizaram contra a mineração de barita. A resposta do crime organizado foi violenta: deslocaram à força dezenas de comunidades. A tolerância do Estado tem sido igualmente grave. Como poderão tornar efetivo o direito de serem sujeitos de direito público para exercerem seus poderes e protegerem seus territórios? Algo semelhante acontece com os huicholes sufocados pelo crime organizado e com o líder Maurilio Ramírez Aguilar sequestrado. Assim, as reformas pró-indígenas ou afro não abordam as bases estruturais da desigualdade: racismo, discriminação, paternalismo, assimilacionismo e racialização.

O avanço da mineração de barita em Chicomuselo, sob o domínio do tráfico de drogas, é um sinal de que o governo não leva a sério a segurança dos povos indígenas. Foto: Sin embargo

Obstetrícia indígena e tradicional

A Reforma da Lei Sanitária relativa à obstetrícia tradicional e à obstetrícia indígena é importante porque reconhece o conhecimento biocultural dos povos indígenas e afro. No entanto, as más práticas do sistema de saúde pública na sua relação com as pessoas e, especificamente, com as mulheres e homens que praticam a obstetrícia tradicional, indicam que a sua implementação será muito difícil até que as bases do racismo que sustentam o setor sejam alteradas, as mentalidades dos seus operadores e das suas práticas.

Embora o governo tenha criado protocolos para o pessoal de saúde na implementação das leis, os movimentos locais e nacionais de parteiras e a Agenda Nacional para a Obstetrícia Tradicional alertam para os riscos e perigos de não começar a limpar a casa por dentro. Em suma, dizem que as mentalidades coloniais, arrogantes, racistas e hegemônicas do setor da saúde em relação ao conhecimento tradicional e à medicina indígena dificultam a implementação da obstetrícia indígena.

Devido à criminalização que sofreram, as parteiras duvidam do desenvolvimento de uma Norma Oficial que atinja este objetivo, o que viola o direito à consulta de acordo com as normas internacionais. Além disso, existe o risco de perpetuar o clientelismo, a imposição, os privilégios e a desigualdade, mesmo entre as pessoas que praticam a obstetrícia tradicional. Isto é relevante porque existem parteiras indígenas, mas também aquelas que obtêm esse conhecimento em condições privilegiadas e exigem o mesmo tratamento.

Embora a reforma da Lei da Saúde reconheça conhecimentos ancestrais, na verdade a discriminação e as más práticas continuam a fazer parte do sistema de saúde. Foto: Soy paciente

Burocratização e ausência de representação

O Catálogo Nacional de Povos e Comunidades Indígenas e Afro-mexicanas visa facilitar o acesso aos recursos para as comunidades que possuem seus cartões de identificação. Isto nos faz pensar por que multiplicar processos burocráticos para cidades sitiadas por megaprojetos, crime organizado e deslocamentos forçados, se já existem bancos de dados de fontes oficiais. O que acontecerá aos grupos que também fazem parte do multiculturalismo, mas são privilegiados pelas políticas do colonialismo, como os menonitas que devastaram a Península de Yucatán?

Finalmente, o Conselho Nacional dos Povos Indígenas (CNPI) propôs reformar o Judiciário Federal para que cumpra os princípios do multiculturalismo, da interculturalidade, do pluralismo jurídico e do respeito às condições de gênero. A proposta enfatiza a jurisdição indígena: “O Poder Judiciário da Federação deve coordenar-se com os povos e comunidades indígenas para o respeito e exercício da jurisdição indígena (…). Nos Circuitos com populações indígenas e afro-mexicanas, garantirão que as propostas recaiam sobre pessoas que cumpram os requisitos previamente indicados e que também conheçam a cultura e língua indígena do referido distrito.”

O que preocupa o CNPI é que não é um órgão representativo dos povos indígenas, pois foi integrado sem realizar consultas de acordo com os padrões internacionais. Da mesma forma, a proposta não aborda as bases da desigualdade estrutural e, no atual contexto de violência e violação dos direitos humanos, as reformas são na forma e não na substância. E procuram apenas mudar as burocracias e apoiar as velhas elites políticas ou trocar parte delas por novas. Na verdade, as reformas não eliminam privilégios nem aterram as lacunas da desigualdade e da implementação de direitos para todos.

Elisa Cruz Rueda

Elisa Cruz Rueda é professora pesquisadora em tempo integral por oposição. Escola de Administração e Autodesenvolvimento Indígena da Universidade Autônoma de Chiapas. Consultora IWGIA.